UMA HISTÓRIA QUE É PRECISO CONTAR...[1]
Episódio 1
“Constituinte para valer tem que
ter palavra de mulher”
EM TEMPO do
recolhimento imposto pela pandemia que, no Brasil já se espalha por todo o seu
vasto território, deixando um rastro assustador de morte, rememorar o passado,
por muita gente desprezado, pode ser um gesto de afirmação da vida. Parece
óbvio mas talvez não seja: dar protagonismo aos fatos vividos pode nos situar
melhor no presente, enriquecer o aqui e agora de cada um, hoje afetado pelo isolamento social. Sou
encantada pela invocação dos fatos constitutivos da linha do tempo. Revisitar
processos sociais em que estivemos envolvidos pode ser um bom tônico nessa hora.
E, assim, incluo essa tarefa em meu cardápio diário. Vai bem com um tinto
razoável (aquele muito bom ainda não provado perde a vez em tempo em que o uso
do dinheiro deve ser seriamente repensado). Revisitar feitos que não são só
meus, ainda que preenchendo lacunas com o permissivo da invenção, só me traz
alegria. Doce afago da memória.
Vivi intensamente uma história que é
preciso contar. E a narro, assim, em primeira pessoa, para sublinhar a
motivação do que segue escrito com base em depoimento que prestei à Professora
Aimée Schneider, em dezembro de 2019. Para chegar ao tempo da Constituinte –
objeto do referido depoimento – senti necessidade de pegar o fio da meada, isto
é, narrar o que vivi desde quando teve inicio a segunda onda do feminismo
brasileiro. E quais foram as articulações dos anos 1970/1980 que nos permitiram
chegar à conquista da igualdade formal e da declaração de nossos direitos na Constituição?
Nasci em 1945. Vivi os
chamados “anos dourados” cujo brilho só existe mesmo em criações ficcionais.
Foram anos difíceis para as jovens mulheres de todos os extratos sociais. A
convocação do feminismo nos anos 1970 foi a minha redenção. Vinculei-me ao
movimento no ano de 1975. Eu já atuara no movimento estudantil,
notadamente em 1968. Entrei na universidade no curso de Letras
(Português-Literatura) da antiga UEG, hoje UERJ, em 1967 e encontrei muitos estudantes
mobilizados na luta contra a ditadura. Não era um agito de meia dúzia de lideranças. Novata, no segundo ano do curso, cheguei a ser uma
dos quatro estudantes eleitos para representar a UERJ no 30º Congresso da UNE
(União Nacional dos Estudantes, posta em clandestinidade pela ditadura militar). Os organizadores do Congresso elegeram a cidade
paulista de Ibiúna para a reunir cerca de mil representantes de todo o país.
Fui presa, fomos todos presos. O Congresso
caiu (como se dizia entre nós quando
alguém ia preso pela polícia da ditadura).
Este foi um fato marcante em minha vida. Sinto que ali fiz a transição de
uma menina sonhadora de classe média, de tradicional família carioca por parte
de pai, para uma mulher consciente das questões sociais. Eu era uma moça muito
bem comportada, a mais velha de sete irmãos. Meu pai, jornalista, dava um
duro danado para sustentar os filhos. Comecei a trabalhar muito cedo. Formei-me
professora primária pública em 1965, quando ainda existia o Estado da
Guanabara. Era um modo de ajudar meu pai, um homem já idoso (começou a ter os
filhos mais velho – eu era a mais velha da prole de sete). Minha mãe era uma mulher do lar, como a maioria
das mães naquela época. Assim, já trabalhando, ingressei na Universidade. A
geração que me antecedeu era muito "século dezenove" – as nossas mães
eram conservadoras, tipo "senta direito, fecha as pernas", "vai
sair com essa roupa?”.
Ao longo dos dez anos
em que eu dava à luz duas filhas e dois filhos,
sensíveis transformações ocorriam no contexto familiar das classes
médias e altas. Pelo menos, no segmento
de pais e mães mais estudados, talvez
mais cultos, havia um interesse pelas novas teorias da educação. Essa fatia da
sociedade buscava para seus filhos escolas sintonizadas com novas metodologias
de ensino baseadas numa perspectiva democrática, atenta às relações familiares
abertas à igualdade de gênero, ao respeito à individualidade e às diferenças do
modo de ser e de pensar. Foram transformações que, em certa medida,
acarretaram significativas mudanças do
padrão até então vigente.
O nosso ativismo
feminista de 1975 se insurgiu contra o Código Civil de 1916, que estabelecia um
regime de hierarquia entre homem e mulher na vigência do casamento. Então, o
que acontecia? Casar era andar para trás. Quem permanecia solteira, era mais
cidadã do que a outra que se casava e procriava. Porque, ao casar, você passaria a ser
subordina ao o marido que, na forma da lei, era o “chefe da sociedade conjugal”
(art.233, do antigo Código Civil), sendo responsável por gerir o patrimônio do
casal e também o patrimônio que a esposa levasse para o casamento. A lei,
assim, estabelecia uma hierarquia que, digamos,
colocava a mulher casada em patamar subalterno em relação ao marido. Mas, até
1968, já atuante no movimento estudantil, eu ainda não tinha consciência dessa
questão. Somente em 1975, ao concluir
meu segundo curso universitário na Faculdade de Direito da UFRJ, eu comecei a
me dar conta da chamada condição da
mulher. Fui motivada a fazer Direito por minha consciência política, na consição de membro do PCB já desde o tempo do curso de Letras. Ao
termino deste curso, foi baixado Decreto-Lei 477 de 1969, que estabeleceu um
regime de perseguição política e punição por motivos políticos-ideológicos dentro das universidades.
O ano de 1975 foi declarado pela ONU (Organização
das Nações Unidas) como o Ano Internacional da Mulher. E a ONU financiou a
realização de um seminário de duração de uma semana para analisar o
comportamento da mulher brasileira. Esse seminário aconteceu na Associação
Brasileira de Imprensa – a ABI – situada na rua Araújo Porto Alegre, no Centro
do Rio. Eu passei por ali, vi o cartaz do evento e me interessei. Fui assistir
a palestra da Juíza do Trabalho, Dra. Anna Britto da Rocha Acker. De lá, deste Seminário, eu já saí vinculada ao ativismo da chamada
“segunda onda”.
O
Seminário da ABI é considerado marco fundador do ativismo feminista desta
segunda onda, a nossa onda. Hoje, parece que já se considera estarmos na
terceira ou quarta onda, mas a nossa – a segunda – foi de fundamental no
sentido de ter lançado uma nova temática na história das lutas das brasileiras
por seus direitos de cidadania. Evoluímos numa abordagem mais genuinamente
feminista que até então não se expressava.
Cabe aqui lembrar mulheres que organizaram o Seminário: Mariska
Ribeiro, Rose Marie Muraro, Carmem da Silva, Branca Moreira Alves, Leila
Linhares Barsted, dentre outras, protagonistas que foram da chamada às mulheres
a pensar que o pessoal é político (Hana
Hanisch,[2])
o
que, aliás, foi visto com muitas reservas pela mulheres dos grupos de esquerda
carioca, atiçadas pela ideia de que o feminismo seria uma ação divisionista a
enfraquecer a luta geral pelas liberdades democráticas. O fato é que, a partir do Seminário,
constituiu-se o núcleo do ativismo feminista carioca. Muitas das que assistiram
o Seminário não voltaram. Mas eu voltei e me engajei. Que bom!
A ONU não só promoveu e financiou o Seminário, como também bancou a
criação de uma instituição que viesse a congregar as ações feministas no Rio de
Janeiro. Então, nós criamos o Centro da Mulher Brasileira/CMB. A ONU financiou
tudo, especialmente, dois anos de aluguel do espaço onde se estabeleceu a sede do
CMB, na rua Franklin Roosevelt, 39, no Centro da cidade. Esta entidade passou a ser o ponto de encontro das
feministas, o local onde as nossas ações eram planejadas.
Logo foi criado um grupo de advogadas de que participei, ainda cursando
meu ultimo ano de Direito, o qual se dedicou a passar em revista a legislação mais
importante, visando detectar as disposições discriminatórias. Este nosso grupo
concluiu pela necessidade de revogar o que chamamos de “lixo discriminatório”
que impedia a igualdade de direitos no plano da lei e dos costumes. Em torno
desta conclusão, passamos a desenvolver uma atuação específica com foco na
situação jurídica da mulher.
No final dos anos 1970 e nos anos seguintes da década de 1980, o
movimento contou com boa receptividade pela imprensa. Jornalistas nos
procuravam para dar entrevistas para jornais diários e participar de debates no rádio e na TV. O
tema da legislação discriminatória teve ótima repercussão na imprensa. É
preciso, então, sublinhar o importante papel das advogadas feministas naqueles
primeiros anos, sem o que não teríamos chegado com a força que chegamos ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e,
logo em seguida, à Assembleia Nacional
Constituinte. Como advogada e ativista,
passei dez anos de minha vida denunciando o tal artigo 233 do Código Civil, que
nos colocava em situação subalterna.
O Rio de Janeiro e São Paulo foram estados protagonistas nesse processo de
debate sobre a legislação retrógrada. Friso: foi muito rico esse período entre
1975 e 1987, quando se deu a abertura dos trabalhos da Constituinte para a sedimentação do
feminismo no Brasil.
O nosso movimento tinha um olhar atento aos fatos, a tudo que dizia respeito à vida das mulheres. Agitávamos nossas propostas em ações de rua. Lembro de uma ação
bem recebida: por sugestão de Hildete Pereira de Melo, foi feita uma pesquisa
no Largo da Carioca sobre o direito ao aborto legal. Inesquecíveis as duas
lindas passeatas: uma em 1983 e outra em 1984, com uma adesão popular incrível!
O fato é que nos capacitamos para chegar à Constituinte representando a palavra
das mulheres. Muita coisa foi feita. Em 1986 tive uma coluna diária
no jornal Última Hora chamada "Palavra de Mulher". Ali eu discutia os
fatos do cotidiano, à luz da questão das mulheres. Criamos a OAB Mulher, que
hoje é uma instituição oficial da OAB em todo o país. Primeiramente, criamos um grupo de estudos a que
chamamos “Mulheres Profissionais do Direito”. Nos reuníamos no escritório que
eu dividia com Leonor Nunes de Paiva, Leila Linhares e Branca Moreira Alves, na rua Debret, 23, no Centro do Rio. Esta mobilização
foi o caminho para se oficializar a OAB Mulher. Detalhe importaante: nosso colega Nilo Batista foi eleito presidente do Conselho Regional da OAB do Rio de Janeiro. Ele nos deu força e a Comissão foi criada, embora vista com reservas por muitos dos
demais Conselheiros.
Em 1984, ocorre a campanha “Diretas Já”, movimento de fato abraçado pela
sociedade civil. A atriz Ruth Escobar (1935-2017), eleita deputada estadual
pelo PMDB de São Paulo, foi protagonista ao puxar a ação que resultaria na
participação do movimento de mulheres na Constituinte. Ruth era amiga de
Tancredo Neves, líder da campanha “Diretas Já”. Ela chegou junto a ele e disse:
“olha, você tem que abrir um órgão no
governo federal de representação dos direitos da mulher. Sem isso, a ditadura
vai continuar...”. Ela apresentou aqueles argumentos todos com seu forte
poder de persuasão... muito contundente, portuguesa... Aí o Tancredo indagou: “quer que bote no papel?” Ela respondeu: “não,
não precisa, eu confio em você”, porque os acertos políticos não vão para o
papel, né? Muito bem. O Presidente Tancredo morre. Assim que soube que o
Sarney iria assumir a Presidência, Ruth, incansável articuladora, foi direto a
ele e disse: “Tancredo fez um pacto de
criação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher e você tem que honrar – se
você não honrar, vou te infernizar, eu tenho mulheres organizadas por todo o
Brasil”. E tinha. Porque o movimento
já estava bem organizado em vários estados. E aí o Sarney, que pegou o negócio
meio assim, né, não tinha muito como discutir: “tá bom, vamos criar o Conselho”. As Conselheiras foram empossadas no dia 15 de março
de 1985. O Conselho foi criado pela Lei 7. 353, de 29/08/1985. Em abril, já
estávamos em Brasília trabalhando na montagem do órgão colegiado, com representação da
sociedade civil, de entes governamentais e demais esferas dos poderes públicos.
O critério de composição foi bem amplo. Naquela época, os
evangélicos não estavam tão em voga como hoje e não tínhamos referencia de
trabalho com mulheres deste segmento religioso sintonizado com nossa proposta
transformadora. as tivemos uma representantes do seguimento da Igreja Católica progressista: Marina Bandeira.
Nós tínhamos aliadas e aliados por todos os lados. Um amigo meu de toda
a vida, o jornalista Mauro Malin, naquela época trabalhava no Jornal do Brasil.
Ele ajudou muito na informação sobre o nosso trabalho. Havia, digamos assim, uma
boa repercussão de nosso discurso numa rede de pessoas que não queriam mais a
ditadura, pessoas e grupos que, como nós,
lutavam por um regime democrático. Então, foi uma união de esforços que
pode ser chamada de uma grande articulação de forças políticas para que a
Constituição que viesse a ser promulgada expressasse a voz da sociedade, isto
é, a representasse.
E qual foi a minha atuação mais específica no Conselho? Como advogada,
por deliberação do Conselho, fiquei incumbida de coordenar a campanha nacional “Mulher
e Constituinte”. Esta campanha foi lançada na solenidade de posse das
Conselheiras. O Conselho já começou causando. Nós lançamos a campanha com um evento bem
bonito no saguão do Ministério da Justiça, com todo o apoio do Ministro
Fernando Lyra, advogado e deputado federal pelo PMDB de Pernambuco. Fizemos uma publicação: " Constituinte tem que ter palavra de
mulher", um evento emblemático. Na verdade, o Conselho tinha uma estrutura de Ministério.
Tinha verba, era possível viajar, os quadros técnicos eram remunerados, foi um órgão
muito bem estruturado para poder estar vivo e atuante. Não era para constar.
Então, como coordenadora da campanha da “Mulher e Constituinte”, criei uma rede
– naquela época não se dispunha de nada de que se tem hoje para criar redes.
Era só o telefone, a carta e o nosso
tititi... Meu primeiro trabalho foi fazer um levantamento da rede, isto é,
buscar o que havia de movimento organizado pelo Brasil afora. E como a gente
obtinha as informações? Por conta de nossa pertinência ao movimento feminista.
Na verdade, o movimento feminista se ocupou do fortalecimento do Conselho. No Rio, em São Paulo, em
Minas Gerais, na Bahia, em Minas Gerais, Pernambuco... Nossa atuação ampliou-se para onde havia já havia algum
núcleo organizado. Assim, pusemos o Conselho a funcionar. Eles, o governo, por assim dizer, se espantavam mas não
atrapalhavam. E fomos frente.
Como coordenadora da campanha, minha tarefa era ir às capitais e cidades
para falar sobre os direitos da mulher, ouvir as mulheres e pedir a
participação delas, pois a Constituinte tinha que debater os direitos da
mulher. E, assim, lá fui eu, Brasil afora, para falar a mesma coisa que eu já
vinha falando há dez anos no Rio: era preciso revogar o artigo 233, do Código
Civil. A nova Constituição teria que garantir esta revogação. Nas visitas do
Conselho, a mim, cabia lançar a ideia de garantir novos direitos ate então
inexistentes. As lideranças locais recolhiam as propostas e as enviavam ao Conselho.
Em seguida, internamente, trabalhamos em equipe sobre o material
recolhido, fazendo uma espécie de
sistematização da pauta de reinvindicações a serem levada à Constituinte. Deste
processo, restou produzido o documento nomeado “Carta das Mulheres à
Constituinte”. Convocamos um encontro que reuniu cerca de 1500 mulheres, com o
objetivo de aprovar a “Carta”. O evento terminou com todas em coro, cantando
“Maria, Maria”, de Milton Nascimento. Foi lindo! O material de divulgação da
Carta circulou por todo o país. A “Carta” – homologada,
por assim dizer, por ampla representação - expunha as nossas propostas, com
redação técnica, pronta para serem debatidas pelos Constituintes. Ou seja: o Conselho, por contar com a participação
formal da sociedade civil, cumpriu papel decisivo na concretização da escrita de
nossos direitos na nova Constituição. Orgulho-me em afirmar: nós, as feministas da geração dos
anos 1970/80, deixamos grande contribuição à luta das mulheres pelo direito à
plenitude de cidadania.
O Congresso passou a funcionar no exercício do poder Constituinte. Foram
criadas as Comissões temáticas. A partir de então, o Conselho e o movimento de
mulheres passou a se ocupar do trabalho de convencer os parlamentares de que os
nossos direitos direitos teriam que constar do texto da Constituição. Por exemplo, a regra até então vigente -
"todos são iguais perante a lei" – não era suficiente para garantir a
igualdade de direitos. E o nosso papel era demonstrar a eles que esse
"todos" não nos representava, que tinha que fazer constar na letra da
Constituição "homens e mulheres". Era uma luta política propriamente
dita, porque tivemos que fazer as articulações que se impunham. Nossa ferramenta era a conversa
ao pé do ouvido. Fizemos uma rede de parlamentares aliados a partir dos que
espontaneamente se prontificaram a nos ouvir. Eram uns poucos deputados e
senadores, algumas deputadas, alguma ou outra senadora...As mulheres eram ( e
ainda são) minoria no Congresso. E dentre essa minoria, poucas parlamentares se
identificavam com a causa das mulheres. Nem todas nos representavam. Algumas
das eleitas sequer sabiam sobre mulher a luta feminista. Outras sabiam e a
recusavam. Mas conseguimos adesões especiais. Por exemplo, a deputada Anna
Maria Rattes (PMDB/RJ) que se conscientizou da causa através dos debates
levados por nós à Constituinte. Pontuo mais uma vez a força da articulação que
fizemos, o nosso empenho suprapartidário de conseguir aliadas à nossas
propostas. Esta nossa visão política foi decisiva para o êxito que tivemos. Cumpre
registrar o especial desempenho da Deputada Cristina Tavares (1834-1992), do
PMDB/PE – uma política tarimbada, com mandatos anteriores, uma mulher que se
fazia ouvir e respeitar no plenário do Congresso. Feminista, de esquerda,
recepcionou Simone Beauvoir e Sartre na visita do casal a Pernambuco nos inicio
dos anos 1960. Precisa mais sobre ela? Éramos feministas radicais nas nossas
proposições, porém maleáveis nas articulações políticas. Sabíamos conversar com
os homens, deputados e senadores,
inclusive com os machistas.
Outro ponto interessante: a gente descobriu lá no Congresso (e hoje deve
ser assim também) que, neste universo político, há pessoas que são ouvidas
pelos seus pares e outras que passam pelo mandato sem fazer história. Buscamos
de saída aqueles e aquelas que tinham um poder político, o poder de influenciar
e decidir. Tínhamos foco e bem
compreendíamos as nuances políticas do Congresso. Rita Camata (PMDB/ES) foi
outro exemplo de aliada que conquistamos. Enfim... Naquele processo, não fazia
diferença entre ser homem ou mulher.
Tivemos muito apoio do deputado Artur da Távola (1936-2008), do PSDB/RJ
e do senador Paulo Bisol (PMDB/RS). O primeiro, atuava na Comissão da Família e
o segundo na decisiva Comissão de Direitos Individuais e Coletivos, as que abarcavam
a nossa pauta e, logo, mais mobilizavam
a nossa atenção. Nestas duas Comissões estava a nossa questão. Basicamente.
Porque, na Comissão dos Direitos Individuais e Coletivos situava-se o tema do
Princípio da Igualdade que repercutiria para o tema dos direitos sociais, dos
trabalhadores e trabalhadoras - art.7º da CF/88. Quanto aos direitos das empregadas
domésticas, não tivemos êxito. O pleito da equiparação aos demais trabalhadores
constava de nossa Carta das Mulheres aos Constituintes. Mas não teve jeito.
Como também não teve jeito o tema da descriminalização do aborto – Código Penal
de 1940 (embora fosse um dos pleitos de nossa Carta). Entretanto, no que toca
ao aborto, o pior não aconteceu. Os segmentos conservadores não conseguiram
inserir na Constituição o critério de que a vida, para efeitos jurídicos, tem
início a partir da concepção. De tal modo, de que restou firmado, há amparo na Constituição para que o Código Penal seja alterado para que se consolide a descriminalização do aborto, com base em regras e critérios já observados nos países - maioria no concerto das nações - que retiraram o aborto do Código Penal. Creio que a descriminalização não passaria naquele
tempo, como não passa ainda hoje. Não havia naquela época, como não há ainda
hoje, respaldo da sociedade, acolhimento na sociedade quanto ao direito de
interromper a gravidez indesejada, em razão da forte presença de religiões
ultra conservadoras. A definição de um crime não é uma coisa que cai do céu: é
uma escolha dos homens.
Creio que, do ponto de vista das mulheres, o resultado da Carta
Constitucional foi positivo. Em meu modo de ver, tudo sempre resulta de
determinada correlação de forças. E, no caso, esta foi favorável às mulheres.
Fomos bem atendidas. Porque já havia, naquele momento, quem quisesse colocar:
"a família será constituída pelo casamento" – fechando o campo de legitimidade na união homem/mulher. Nós dissemos "não", porque já entraria aí um critério formal excludente, em
contrário do que acontece na vida. A solução adotada foi a melhor: no caput no artigo 226, definiu-se que "a
família é destinatária da proteção do Estado" e só. No parágrafo 3º, do mesmo artigo,
reconhece-se a união
estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei
facilitar sua conversão em casamento. Outro avanço. E no parágrafo 5º, o legislador replica o princípio da igualdade
declarado no artigo 5º: “Os direitos e
deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e
pela mulher.” Para o contexto da época, não poderia ter ficado melhor.
Então, eu diria que, do ponto de vista da mulher, avançamos muito,
ressalvada a omissão da Constituinte em relação às trabalhadoras domésticas,
acima apontado. Somente em 2015, com a Lei Complementar nº 150, os direitos das
domesticas foram equiparados aos dos demais trabalhadores e trabalhadoras.
Hoje, no atual contexto do país, mexer na Constituição quanto a tema
relacionado aos nossos direitos seria um perigo enorme. Porque – repito - é sempre uma questão de
correlação de forças, sempre é preciso saber onde se está pisando, para saber até
onde se vai. E nós, as feministas daquela época, tínhamos muita ciência disto. Ainda
vivíamos no regime de exceção que somente a aprovação da nova Constituição
viria a enterrar. Então, não adianta você radicalizar no discurso e perder
espaço no concreto, na articulação política. Eu considero essa nossa visão um
fator determinante para o resultado do texto. Há um outro aspecto a ser
ressaltado: não éramos só nós, as mulheres que lá estávamos a postular direitos
de cidadania. Lá também estavam
representações dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, o pessoal da Reforma
Agrária, os servidores públicos, o pessoal da saúde... Se você sai folheando a Constituição,
pode constatar que o resultado retrata o esforço participativo da sociedade.
Uma boa Constituição deve conter princípios que orientem a normatização
ordinária. E, na Constituinte, a participação de legitimas forças
representativas da sociedade alimentou a inclusão dos princípios de garantia
das liberdades democráticas no texto da Constituição. Esse tempo foi, portanto,
um bom exercício democrático. Ali se fez ouvir a voz do povo, o que veio
conferir legitimidade ao processo de debates sobre a Constituição de 1988. Ou seja, os representantes eleitos
que não quiseram dar ouvidos à sociedade sucumbiram no anonimato. Felizmente,
as lideranças parlamentares acolheram os seguimentos representativos. Lembro
que o Deputado Marcelo Cordeiro (PMDB/BA), que apoiava a nossa causa, integrava
a Mesa Diretora da Câmara, se não me engano, com Secretário Geral e seu
gabinete sempre esteve aberto a nós, inclusive com apoio de infraestrutura, por
exemplo, disponibilizando uso de máquina de escrever, cópias xerox... Algo
impensável nos dias de hoje. Importante registrar que o trânsito de pessoas no
interior dos prédios do Congresso era quase totalmente livre. Ainda não haviam catracas e necessidade de identificação para o acesso. Algo, igualmente,
impensável nos dias de hoje.
O texto da Constituição foi se afirmando entre debates acalorados e até
certos confrontos, como era de se esperar. A Comissão da Família abrigou tais
momentos de tensão: havia lá o núcleo duro da Igreja Católica, parlamentares conservadores,
a turma da direita que tinha grande interesse no tema. O patriarcado não
brinca numa hora dessas. A pressão foi
forte. Mas, no mais fundamental, perderam. Não sustentaram o conceito mais
retrógrado de definição de “família” que defendiam.
Eu não sei se hoje daria certo. O modo de fazer política mudou muito.
Hoje, tudo que diz respeito à democracia
– ao seu sustento e aprimoramento - ficou mais difícil. Na Constituinte, o
interesse na democracia foi mais forte. Isto fez a diferença. Ao núcleo pesado
da direita se opunha um time de parlamentares preparados para o embate
ideológico, a exemplo do já mencionado Senador Paulo Bisol que, na Comissão dos
Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, defendeu de modo brilhante a
igualdade de direitos, a pauta contida em nossa Carta aos Constituintes. Ficou
uma sensação acolhedora de que a gente escreveu a Constituição com eles. Isso
foi bonito. Por exemplo, à última hora, já tarde da noite, ligaram para Schuma
(Schumaher), Secretária Executiva do CNDM, para pedir a redação de um parágrafo
a ser acrescentado no artigo da família (226), de modo a tratar da violência
doméstica. Schuma me liga e diz : "olha,
a gente tem que escrever aí uma uma proposta de redação sobre violência na
família...essa é com você que é do Direito... " Eu já estava pronta
para dormir. Aí, peguei um papelzinho e escrevi: "o Estado... promoverá
ações para coibir a violência no âmbito das relações da família... " –
algo assim. Desta ação noturna resultou o parágrafo oitavo, do artigo 226,
da Carta. Passou, foi aprovado.
Foi assim que a gente fez a
Constituição. Foi este um tempo rico, profícuo, foi uma inesquecível experiência
que veio a se desdobrar em novas leis garantidoras de direitos, novo patamar de
cidadania que – em tese - permite às mulheres melhores condições no projeto de estruturar
suas vidas, como também permite aos homens se desatrelar dos modos e costumes
patriarcais, tão contrários ao que há de melhor na raça humana.