sábado, 9 de maio de 2020


UMA HISTÓRIA QUE É PRECISO CONTAR...[1]

Episódio 1

“Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher”

EM TEMPO do recolhimento imposto pela pandemia que, no Brasil já se espalha por todo o seu vasto território, deixando um rastro assustador de morte, rememorar o passado, por muita gente desprezado, pode ser um gesto de afirmação da vida. Parece óbvio mas talvez não seja: dar protagonismo aos fatos vividos pode nos situar melhor no presente, enriquecer o aqui e agora de cada um,  hoje afetado pelo isolamento social. Sou encantada pela invocação dos fatos constitutivos da linha do tempo. Revisitar processos sociais em que estivemos envolvidos pode ser um bom tônico nessa hora. E, assim, incluo essa tarefa em meu cardápio diário. Vai bem com um tinto razoável (aquele muito bom ainda não provado perde a vez em tempo em que o uso do dinheiro deve ser seriamente repensado). Revisitar feitos que não são só meus, ainda que preenchendo lacunas com o permissivo da invenção, só me traz alegria. Doce afago da memória.  
Vivi intensamente uma história que é preciso contar. E a narro, assim, em primeira pessoa, para sublinhar a motivação do que segue escrito com base em depoimento que prestei à Professora Aimée Schneider, em dezembro de 2019. Para chegar ao tempo da Constituinte – objeto do referido depoimento – senti necessidade de pegar o fio da meada, isto é, narrar o que vivi desde quando teve inicio a segunda onda do feminismo brasileiro. E quais foram as articulações dos anos 1970/1980 que nos permitiram chegar à conquista da igualdade formal e da declaração de nossos direitos na Constituição? 
Nasci em 1945. Vivi os chamados “anos dourados” cujo brilho só existe mesmo em criações ficcionais. Foram anos difíceis para as jovens mulheres de todos os extratos sociais. A convocação do feminismo nos anos 1970 foi a minha redenção. Vinculei-me ao movimento no ano de 1975. Eu já atuara no movimento estudantil, notadamente em 1968. Entrei na universidade no curso de Letras (Português-Literatura) da antiga UEG, hoje UERJ, em 1967 e encontrei muitos estudantes mobilizados na luta contra a ditadura. Não era um agito de meia dúzia de lideranças. Novata, no segundo ano do curso, cheguei a ser uma dos quatro estudantes eleitos para representar a UERJ no 30º Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes, posta em clandestinidade pela ditadura militar). Os organizadores do Congresso elegeram a cidade paulista de Ibiúna para a reunir cerca de mil representantes de todo o país. Fui presa, fomos todos presos. O  Congresso caiu (como se dizia entre nós quando alguém ia preso pela polícia da ditadura).  Este foi um fato marcante em minha vida. Sinto que ali fiz a transição de uma menina sonhadora de classe média, de tradicional família carioca por parte de pai, para uma mulher consciente das questões sociais. Eu era uma moça muito bem comportada, a mais velha de sete irmãos. Meu pai, jornalista, dava um duro danado para sustentar os filhos. Comecei a trabalhar muito cedo. Formei-me professora primária pública em 1965, quando ainda existia o Estado da Guanabara. Era um modo de ajudar meu pai, um homem já idoso (começou a ter os filhos mais velho – eu era a mais velha da prole de sete). Minha mãe era uma mulher do lar, como a maioria das mães naquela época. Assim, já trabalhando, ingressei na Universidade. A geração que me antecedeu era muito "século dezenove" – as nossas mães eram conservadoras, tipo "senta direito, fecha as pernas", "vai sair com essa  roupa?”.
Ao longo dos dez anos em que eu dava à luz duas filhas e dois filhos,  sensíveis transformações ocorriam no contexto familiar das classes médias e altas.  Pelo menos, no segmento de pais e mães mais estudados, talvez mais cultos, havia um interesse pelas novas teorias da educação. Essa fatia da sociedade buscava para seus filhos escolas sintonizadas com novas metodologias de ensino baseadas numa perspectiva democrática, atenta às relações familiares abertas à igualdade de gênero, ao respeito à individualidade e às diferenças do modo de ser e de pensar. Foram transformações que, em certa medida, acarretaram  significativas mudanças do padrão até então vigente.
O nosso ativismo feminista de 1975 se insurgiu contra o Código Civil de 1916, que estabelecia um regime de hierarquia entre homem e mulher na vigência do casamento. Então, o que acontecia? Casar era andar para trás. Quem permanecia solteira, era mais cidadã do que a outra que se casava e procriava.  Porque, ao casar, você passaria a ser subordina ao o marido que, na forma da lei, era o “chefe da sociedade conjugal” (art.233, do antigo Código Civil), sendo responsável por gerir o patrimônio do casal e também o patrimônio que a esposa levasse para o casamento. A lei, assim, estabelecia uma hierarquia que, digamos, colocava a mulher casada em patamar subalterno em relação ao marido. Mas, até 1968, já atuante no movimento estudantil, eu ainda não tinha consciência dessa questão. Somente  em 1975, ao concluir meu segundo curso universitário na Faculdade de Direito da UFRJ, eu comecei a me dar conta da chamada condição da mulher. Fui motivada a fazer Direito por minha consciência política, na consição de membro do PCB já desde o tempo do  curso de Letras. Ao termino deste curso, foi baixado Decreto-Lei 477 de 1969, que estabeleceu um regime de perseguição política e punição por motivos políticos-ideológicos  dentro das universidades.
O ano de 1975 foi declarado pela ONU (Organização das Nações Unidas) como o Ano Internacional da Mulher. E a ONU financiou a realização de um seminário de duração de uma semana para analisar o comportamento da mulher brasileira. Esse seminário aconteceu na Associação Brasileira de Imprensa – a ABI – situada na rua Araújo Porto Alegre, no Centro do Rio. Eu passei por ali, vi o cartaz do evento e me interessei. Fui assistir a palestra da Juíza do Trabalho, Dra. Anna Britto da Rocha Acker. De lá, deste Seminário, eu já saí vinculada ao ativismo da chamada “segunda onda”.
O Seminário da ABI é considerado marco fundador do ativismo feminista desta segunda onda, a nossa onda. Hoje, parece que já se considera estarmos na terceira ou quarta onda, mas a nossa – a segunda – foi de fundamental no sentido de ter lançado uma nova temática na história das lutas das brasileiras por seus direitos de cidadania. Evoluímos numa abordagem mais genuinamente feminista que até então não se expressava.  Cabe aqui lembrar mulheres que organizaram o Seminário: Mariska Ribeiro, Rose Marie Muraro, Carmem da Silva, Branca Moreira Alves, Leila Linhares Barsted, dentre outras, protagonistas que foram da chamada às mulheres a pensar que o pessoal é político (Hana Hanisch,[2])  o que, aliás, foi visto com muitas reservas pela mulheres dos grupos de esquerda carioca, atiçadas pela ideia de que o feminismo seria uma ação divisionista a enfraquecer a luta geral pelas liberdades democráticas.  O fato é que, a partir do Seminário, constituiu-se o núcleo do ativismo feminista carioca. Muitas das que assistiram o Seminário não voltaram. Mas eu voltei e me engajei. Que bom!
A ONU não só promoveu e financiou o Seminário, como também bancou a criação de uma instituição que viesse a congregar as ações feministas no Rio de Janeiro. Então, nós criamos o Centro da Mulher Brasileira/CMB. A ONU financiou tudo, especialmente, dois anos de aluguel do espaço onde se estabeleceu a sede do CMB, na rua Franklin Roosevelt, 39, no Centro da cidade. Esta  entidade passou a ser o ponto de encontro das feministas, o local onde as nossas ações eram planejadas.
Logo foi criado um grupo de advogadas de que participei, ainda cursando meu ultimo ano de Direito, o qual se dedicou a passar em revista a legislação mais importante, visando detectar as disposições discriminatórias. Este nosso grupo concluiu pela necessidade de revogar o que chamamos de “lixo discriminatório” que impedia a igualdade de direitos no plano da lei e dos costumes. Em torno desta conclusão, passamos a desenvolver uma atuação específica com foco na situação jurídica da mulher.  
No final dos anos 1970 e nos anos seguintes da década de 1980, o movimento contou com boa receptividade pela imprensa. Jornalistas nos procuravam para dar entrevistas para jornais diários e participar de debates no rádio e na TV. O tema da legislação discriminatória teve ótima repercussão na imprensa. É preciso, então, sublinhar o importante papel das advogadas feministas naqueles primeiros anos, sem o que não teríamos chegado com a força que chegamos ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e, logo em seguida,  à Assembleia Nacional Constituinte.  Como advogada e ativista, passei dez anos de minha vida denunciando o tal artigo 233 do Código Civil, que nos colocava em situação subalterna.
O Rio de Janeiro e São Paulo foram estados protagonistas nesse processo de debate sobre a legislação retrógrada. Friso: foi muito rico esse período entre 1975 e 1987, quando se deu a abertura dos trabalhos da Constituinte para a sedimentação do feminismo no Brasil.
O nosso movimento tinha um olhar atento aos fatos, a tudo que dizia respeito à vida das mulheres. Agitávamos nossas propostas em ações de rua. Lembro de uma ação bem recebida: por sugestão de Hildete Pereira de Melo, foi feita uma pesquisa no Largo da Carioca sobre o direito ao aborto legal. Inesquecíveis as duas lindas passeatas: uma em 1983 e outra em 1984, com uma adesão popular incrível! O fato é que nos capacitamos para chegar à Constituinte representando a palavra das mulheres. Muita coisa foi feita. Em 1986 tive uma coluna diária no jornal Última Hora chamada "Palavra de Mulher". Ali eu discutia os fatos do cotidiano, à luz da questão das mulheres. Criamos a OAB Mulher, que hoje é uma instituição oficial da OAB em todo o país. Primeiramente, criamos um grupo de estudos a que chamamos “Mulheres Profissionais do Direito”. Nos reuníamos no escritório que eu dividia com Leonor Nunes de Paiva, Leila Linhares e Branca Moreira Alves, na rua Debret, 23, no Centro do Rio. Esta mobilização foi o caminho para se oficializar a OAB Mulher. Detalhe importaante: nosso colega Nilo Batista foi eleito presidente do Conselho Regional da OAB do Rio de Janeiro. Ele nos deu força e a Comissão foi criada, embora vista com reservas por muitos dos demais Conselheiros.
Em 1984, ocorre a campanha “Diretas Já”, movimento de fato abraçado pela sociedade civil. A atriz Ruth Escobar (1935-2017), eleita deputada estadual pelo PMDB de São Paulo, foi protagonista ao puxar a ação que resultaria na participação do movimento de mulheres na Constituinte. Ruth era amiga de Tancredo Neves, líder da campanha “Diretas Já”. Ela chegou junto a ele e disse: “olha, você tem que abrir um órgão no governo federal de representação dos direitos da mulher. Sem isso, a ditadura vai continuar...”. Ela apresentou aqueles argumentos todos com seu forte poder de persuasão... muito contundente, portuguesa... Aí o Tancredo indagou: “quer que bote no papel?” Ela respondeu: “não, não precisa, eu confio em você”, porque os acertos políticos não vão para o papel, né? Muito bem. O Presidente Tancredo morre. Assim que soube que o Sarney iria assumir a Presidência, Ruth, incansável articuladora, foi direto a ele e disse: “Tancredo fez um pacto de criação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher e você tem que honrar – se você não honrar, vou te infernizar, eu tenho mulheres organizadas por todo o Brasil”. E tinha.  Porque o movimento já estava bem organizado em vários estados. E aí o Sarney, que pegou o negócio meio assim, , não tinha muito como discutir: “tá bom, vamos criar o Conselho”. As Conselheiras foram empossadas no dia 15 de março de 1985. O Conselho foi criado pela Lei 7. 353, de 29/08/1985. Em abril, já estávamos em Brasília trabalhando na montagem do órgão colegiado, com representação da sociedade civil, de entes governamentais e demais esferas dos poderes públicos. O critério de composição foi bem amplo. Naquela época, os evangélicos não estavam tão em voga como hoje e não tínhamos referencia de trabalho com mulheres deste segmento religioso sintonizado com nossa proposta transformadora. as tivemos uma representantes do seguimento da Igreja Católica progressista: Marina Bandeira.   
Nós tínhamos aliadas e aliados por todos os lados. Um amigo meu de toda a vida, o jornalista Mauro Malin, naquela época trabalhava no Jornal do Brasil. Ele ajudou muito na informação sobre o nosso trabalho. Havia, digamos assim, uma boa repercussão de nosso discurso numa rede de pessoas que não queriam mais a ditadura, pessoas e grupos que, como nós,  lutavam por um regime democrático. Então, foi uma união de esforços que pode ser chamada de uma grande articulação de forças políticas para que a Constituição que viesse a ser promulgada expressasse a voz da sociedade, isto é, a representasse.
E qual foi a minha atuação mais específica no Conselho? Como advogada, por deliberação do Conselho, fiquei incumbida de coordenar a campanha nacional “Mulher e Constituinte”. Esta campanha foi lançada na solenidade de posse das Conselheiras. O Conselho já começou causando. Nós lançamos a campanha com um evento bem bonito no saguão do Ministério da Justiça, com todo o apoio do Ministro Fernando Lyra, advogado e deputado federal pelo PMDB de Pernambuco.  Fizemos uma publicação: " Constituinte tem que ter palavra de mulher", um evento emblemático. Na verdade, o Conselho tinha uma estrutura de Ministério. Tinha verba, era possível viajar, os quadros técnicos eram remunerados, foi um órgão muito bem estruturado para poder estar vivo e atuante. Não era para constar. Então, como coordenadora da campanha da “Mulher e Constituinte”, criei uma rede – naquela época não se dispunha de nada de que se tem hoje para criar redes. Era só o telefone,  a carta e o nosso tititi... Meu primeiro trabalho foi fazer um levantamento da rede, isto é, buscar o que havia de movimento organizado pelo Brasil afora. E como a gente obtinha as informações? Por conta de nossa pertinência ao movimento feminista. Na verdade, o movimento feminista se ocupou do fortalecimento do Conselho. No Rio, em São Paulo, em Minas Gerais, na Bahia, em Minas Gerais, Pernambuco... Nossa atuação ampliou-se para onde havia já havia algum núcleo organizado. Assim, pusemos o Conselho a funcionar. Eles, o governo, por assim dizer, se espantavam mas não atrapalhavam. E fomos frente.
Como coordenadora da campanha, minha tarefa era ir às capitais e cidades para falar sobre os direitos da mulher, ouvir as mulheres e pedir a participação delas, pois a Constituinte tinha que debater os direitos da mulher. E, assim, lá fui eu, Brasil afora, para falar a mesma coisa que eu já vinha falando há dez anos no Rio: era preciso revogar o artigo 233, do Código Civil. A nova Constituição teria que garantir esta revogação. Nas visitas do Conselho, a mim, cabia lançar a ideia de garantir novos direitos ate então inexistentes. As lideranças locais recolhiam as propostas e as enviavam ao Conselho. Em seguida, internamente, trabalhamos em equipe sobre o material recolhido,  fazendo uma espécie de sistematização da pauta de reinvindicações a serem levada à Constituinte. Deste processo, restou produzido o documento nomeado “Carta das Mulheres à Constituinte”. Convocamos um encontro que reuniu cerca de 1500 mulheres, com o objetivo de aprovar a “Carta”. O evento terminou com todas em coro, cantando “Maria, Maria”, de Milton Nascimento. Foi lindo! O material de divulgação da Carta circulou por todo o país. A “Carta” – homologada, por assim dizer, por ampla representação - expunha as nossas propostas, com redação técnica, pronta para serem debatidas pelos Constituintes.  Ou seja: o Conselho, por contar com a participação formal da sociedade civil, cumpriu papel decisivo na concretização da escrita de nossos direitos na nova Constituição. Orgulho-me em afirmar: nós, as feministas da geração dos anos 1970/80, deixamos grande contribuição à luta das mulheres pelo direito à plenitude de cidadania.
O Congresso passou a funcionar no exercício do poder Constituinte. Foram criadas as Comissões temáticas. A partir de então, o Conselho e o movimento de mulheres passou a se ocupar do trabalho de convencer os parlamentares de que os nossos direitos direitos teriam que constar do texto da Constituição.  Por exemplo, a regra até então vigente - "todos são iguais perante a lei" – não era suficiente para garantir a igualdade de direitos. E o nosso papel era demonstrar a eles que esse "todos" não nos representava, que tinha que fazer constar na letra da Constituição "homens e mulheres". Era uma luta política propriamente dita, porque tivemos que fazer as articulações que se impunham. Nossa ferramenta era a conversa ao pé do ouvido. Fizemos uma rede de parlamentares aliados a partir dos que espontaneamente se prontificaram a nos ouvir. Eram uns poucos deputados e senadores, algumas deputadas, alguma ou outra senadora...As mulheres eram ( e ainda são) minoria no Congresso. E dentre essa minoria, poucas parlamentares se identificavam com a causa das mulheres. Nem todas nos representavam. Algumas das eleitas sequer sabiam sobre mulher a luta feminista. Outras sabiam e a recusavam. Mas conseguimos adesões especiais. Por exemplo, a deputada Anna Maria Rattes (PMDB/RJ) que se conscientizou da causa através dos debates levados por nós à Constituinte. Pontuo mais uma vez a força da articulação que fizemos, o nosso empenho suprapartidário de conseguir aliadas à nossas propostas. Esta nossa visão política foi decisiva para o êxito que tivemos. Cumpre registrar o especial desempenho da Deputada Cristina Tavares (1834-1992), do PMDB/PE – uma política tarimbada, com mandatos anteriores, uma mulher que se fazia ouvir e respeitar no plenário do Congresso. Feminista, de esquerda, recepcionou Simone Beauvoir e Sartre na visita do casal a Pernambuco nos inicio dos anos 1960. Precisa mais sobre ela? Éramos feministas radicais nas nossas proposições, porém maleáveis nas articulações políticas. Sabíamos conversar com os homens, deputados e senadores,  inclusive com os machistas.
Outro ponto interessante: a gente descobriu lá no Congresso (e hoje deve ser assim também) que, neste universo político, há pessoas que são ouvidas pelos seus pares e outras que passam pelo mandato sem fazer história. Buscamos de saída aqueles e aquelas que tinham um poder político, o poder de influenciar e decidir. Tínhamos  foco e bem compreendíamos as nuances políticas do Congresso. Rita Camata (PMDB/ES) foi outro exemplo de aliada que conquistamos. Enfim... Naquele processo, não fazia diferença entre ser homem ou mulher.  Tivemos muito apoio do deputado Artur da Távola (1936-2008), do PSDB/RJ e do senador Paulo Bisol (PMDB/RS). O primeiro, atuava na Comissão da Família e o segundo na decisiva Comissão de Direitos Individuais e Coletivos, as que abarcavam a nossa pauta e, logo,  mais mobilizavam a nossa atenção. Nestas duas Comissões estava a nossa questão. Basicamente. Porque, na Comissão dos Direitos Individuais e Coletivos situava-se o tema do Princípio da Igualdade que repercutiria para o tema dos direitos sociais, dos trabalhadores e trabalhadoras - art.7º da CF/88.  Quanto aos direitos das empregadas domésticas, não tivemos êxito. O pleito da equiparação aos demais trabalhadores constava de nossa Carta das Mulheres aos Constituintes. Mas não teve jeito. Como também não teve jeito o tema da descriminalização do aborto – Código Penal de 1940 (embora fosse um dos pleitos de nossa Carta). Entretanto, no que toca ao aborto, o pior não aconteceu. Os segmentos conservadores não conseguiram inserir na Constituição o critério de que a vida, para efeitos jurídicos, tem início a partir da concepção. De tal modo, de que restou firmado,  há amparo na Constituição para que o Código Penal seja alterado para que se consolide a descriminalização do aborto, com base em regras e critérios já observados nos países - maioria no concerto das nações - que retiraram o aborto do Código Penal. Creio que a descriminalização não passaria naquele tempo, como não passa ainda hoje. Não havia naquela época, como não há ainda hoje, respaldo da sociedade, acolhimento na sociedade quanto ao direito de interromper a gravidez indesejada, em razão da forte presença de religiões ultra conservadoras. A definição de um crime não é uma coisa que cai do céu: é uma escolha dos homens.
Creio que, do ponto de vista das mulheres, o resultado da Carta Constitucional foi positivo. Em meu modo de ver, tudo sempre resulta de determinada correlação de forças. E, no caso, esta foi favorável às mulheres. Fomos bem atendidas. Porque já havia, naquele momento, quem quisesse colocar: "a família será constituída pelo casamento" – fechando o campo de legitimidade na união homem/mulher. Nós dissemos "não", porque já entraria aí um critério formal excludente, em contrário do que acontece na vida. A solução adotada foi a melhor: no caput no artigo 226, definiu-se que "a família é destinatária da proteção do Estado" e só. No parágrafo 3º, do mesmo artigo, reconhece-se a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. Outro avanço. E no parágrafo 5º, o legislador replica o princípio da igualdade declarado no artigo 5º: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.” Para o contexto da época, não poderia ter ficado melhor.  
Então, eu diria que, do ponto de vista da mulher, avançamos muito, ressalvada a omissão da Constituinte em relação às trabalhadoras domésticas, acima apontado. Somente em 2015, com a Lei Complementar nº 150, os direitos das domesticas foram equiparados aos dos demais trabalhadores e trabalhadoras.
Hoje, no atual contexto do país, mexer na Constituição quanto a tema relacionado aos nossos direitos seria um perigo enorme.  Porque – repito - é sempre uma questão de correlação de forças, sempre é preciso saber onde se está pisando, para saber até onde se vai. E nós, as feministas daquela época, tínhamos muita ciência disto. Ainda vivíamos no regime de exceção que somente a aprovação da nova Constituição viria a enterrar. Então, não adianta você radicalizar no discurso e perder espaço no concreto, na articulação política. Eu considero essa nossa visão um fator determinante para o resultado do texto. Há um outro aspecto a ser ressaltado: não éramos só nós, as mulheres que lá estávamos a postular direitos de cidadania. Lá  também estavam representações dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, o pessoal da Reforma Agrária, os servidores públicos, o pessoal da saúde... Se você sai folheando a Constituição, pode constatar que o resultado retrata o esforço participativo da sociedade.
Uma boa Constituição deve conter princípios que orientem a normatização ordinária. E, na Constituinte, a participação de legitimas forças representativas da sociedade alimentou a inclusão dos princípios de garantia das liberdades democráticas no texto da Constituição. Esse tempo foi, portanto, um bom exercício democrático. Ali se fez ouvir a voz do povo, o que veio conferir legitimidade ao processo de debates sobre a Constituição  de 1988. Ou seja, os representantes eleitos que não quiseram dar ouvidos à sociedade sucumbiram no anonimato. Felizmente, as lideranças parlamentares acolheram os seguimentos representativos. Lembro que o Deputado Marcelo Cordeiro (PMDB/BA), que apoiava a nossa causa, integrava a Mesa Diretora da Câmara, se não me engano, com Secretário Geral e seu gabinete sempre esteve aberto a nós, inclusive com apoio de infraestrutura, por exemplo, disponibilizando uso de máquina de escrever, cópias xerox... Algo impensável nos dias de hoje. Importante registrar que o trânsito de pessoas no interior dos prédios do Congresso era quase totalmente livre. Ainda não haviam catracas e necessidade de identificação para o acesso. Algo, igualmente, impensável nos dias de hoje.
O texto da Constituição foi se afirmando entre debates acalorados e até certos confrontos, como era de se esperar. A Comissão da Família abrigou tais momentos de tensão: havia lá o núcleo duro da Igreja Católica, parlamentares conservadores, a turma da direita que tinha grande interesse no tema. O patriarcado não brinca numa hora dessas. A pressão foi forte. Mas, no mais fundamental, perderam. Não sustentaram o conceito mais retrógrado de definição de “família” que defendiam. 
Eu não sei se hoje daria certo. O modo de fazer política mudou muito. Hoje,  tudo que diz respeito à democracia – ao seu sustento e aprimoramento - ficou mais difícil. Na Constituinte, o interesse na democracia foi mais forte. Isto fez a diferença. Ao núcleo pesado da direita se opunha um time de parlamentares preparados para o embate ideológico, a exemplo do já mencionado Senador Paulo Bisol que, na Comissão dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, defendeu de modo brilhante a igualdade de direitos, a pauta contida em nossa Carta aos Constituintes. Ficou uma sensação acolhedora de que  a gente escreveu a Constituição com eles. Isso foi bonito. Por exemplo, à última hora, já tarde da noite, ligaram para Schuma (Schumaher), Secretária Executiva do CNDM, para pedir a redação de um parágrafo a ser acrescentado no artigo da família (226), de modo a tratar da violência doméstica. Schuma me liga e diz : "olha, a gente tem que escrever aí uma uma proposta de redação sobre violência na família...essa é com você que é do Direito... " Eu já estava pronta para dormir. Aí, peguei um papelzinho e escrevi: "o Estado... promoverá ações para coibir a violência no âmbito das relações da família... " – algo assim. Desta ação noturna resultou o parágrafo oitavo, do artigo 226, da Carta. Passou, foi aprovado. Foi assim que a gente fez a Constituição. Foi este um tempo rico, profícuo, foi uma inesquecível experiência que veio a se desdobrar em novas leis garantidoras de direitos, novo patamar de cidadania que – em tese - permite às mulheres melhores condições no projeto de estruturar suas vidas, como também permite aos homens se desatrelar dos modos e costumes patriarcais, tão contrários ao que há de melhor na raça humana.            



[1] Este artigo se baseia em depoimento prestado em dezembro de 2019 à historiadora Aimée Schneider, professora e advogada, com formação dupla, em Direito e em História, dedicada às  áreas de Direito Constitucional e de História Contemporânea brasileira, tendo como foco de produção os temas da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, a redemocratização, a memória e os direitos das mulheres. É doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais na Universidade Federal Fluminense (UFF) e em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

[2] Jornalista e feminista radical americana nascida em 1942.


segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Presidenta... por que empregar o feminino




Professora Nubia Hanciau
Aposentadado Programa de Pós Graduação em Letras
Universidade Federal do Rio Grande - FURG


            As mulheres sofreram através da história permanente situação de inferioridade calcada pelos homens. Mas sempre é tempo de reagir com grandeza, não como se fez na década de setenta nos Estados Unidos, comandando de forma um tanto quanto grotesca, mas talvez necessária, a queima de sutiãs. É hora ainda de reagir de maneira séria, como sugere o jornalista Marcos de Castro (O Globo), exigindo, por exemplo, que os cargos importantes, aqueles cuja ocupação requer um comportamento digno – que o Governo do Distrito Federal não seja luz a iluminar esse caminho – tenham tratamento através do bom e velho gênero feminino.
Mesmo assim, é preciso lembrar que o emprego do feminino tem sido matéria para refletir notadamente depois de termos uma primeira Presidenta mulher, e do seu compromisso de honrar a mulher brasileira criando igualdade de oportunidades entre o homem e a mulher, segundo ela, princípio essencial da democracia. “Sim, a mulher pode [...]. Eu cheguei à presidência porque uma porção de mulheres saíram de suas casas e foram trabalhar [...]. Esse conjunto de mulheres começou e cada vez mais passou a construir o Brasil de forma mais clara e mais brasileira. Por isso concordo em ser Presidenta” (Dilma Roussef, Programa Ana Maria Braga, 2 de março 2011).
Na Câmara, temos deputados e deputadas. No Senado Federal, senadores e senadoras. Mas, se a dignidade do cargo é extrema, como no caso de presidente da República, deixamos de ter presidente ou presidenta, o gênero de acordo com o sexo. Ficamos apenas com o masculino. A mensagem é clara, o sexo feminino não merece consideração que o leve a igualar-se ao masculino numa posição suprema: aí, então, o tratamento não pode mais ser feminino, tem de ser "a presidente", ainda que tal concordância quase nos quebre a língua e a “presidente" seja forma tão rebarbativa que chega a doer no ouvido. Tanto quanto o adjetivo qualificativo masculino “inocenta”!
Além do mais, é preciso lembrar aos desavisados que acreditam que o substantivo presidente não tem feminino. Não só tem, sim, como está em todos os dicionários, e também no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, publicação da Academia Brasileira que funciona como repositório oficial das palavras da língua. E lá aparece como verbete independente, como também no Houaiss e no Aurélio.
        A feminização dos títulos de função pública tem origem nesse fenômeno social apontado por Roussef: a ascensão maciça das mulheres ao mercado de trabalho. Sua integração em atividades das quais elas estiveram excluí­das provocou a evolução lexical e gramatical da língua. Se a feminização responde a uma dupla necessidade – a primei­ra de ordem lingüística, a segunda de ordem social –, a constatação de que a mulher está ausente na língua se impõe: por toda parte, o masculino vem na frente, apagando a presença do feminino.
        Segun­do uma nova geração de mulheres, o imaginário deve ser reinventado por elas, menos para restabelecer a ordem das coisas do que para constituir um mundo próprio, que promova uma espécie de sindicato em defesa e valorização da identidade feminina. Louise Larivière, professora das Universidades de Montreal e Concórdia no Canadá, defende a razão de ser da feminização e analisa as causas que criam obstáculo, quer à visibilidade das mulheres, quer à igualdade entre elas e os homens. Faz isso des­crevendo a oposição às formas marcadas, muitas vezes, pela ignorância, pela idiotia ou má-fé. Sua tese é simples e direta: coerente no plano lingüístico, no plano social a feminização “testemunha a respei­to do lugar que agora a mulher ocupa em todas as esferas da vida mo­derna”. Feminizar é, então, ir contra o sexismo na língua e na sociedade.
        São conhecidos os argumentos dos adversários dessa tese. Em primeiro lugar, defendem a neutralidade dos termos genéricos, por exemplo, “o homem” (“O homem é um mamífe­ro, ele amamenta seus filhotes”). Fonte de ambigüidade, esse méto­do acarreta incongruências como essa, difíceis de tolerar quando faz um dos papéis específicos desempenhar o papel de genérico, quase sempre o masculino. Se as palavras não designam apenas as funções, mas as pessoas que as exercem, elas deveriam logicamente trazer a marca do gênero que corresponde ao sexo dessas pes­soas.
        É preciso terminar com o desprezo pelo gênero feminino, conservado pelos dinossauros das academias e seus seguidores. Somente a feminização pode corrigir as derrapagens, as aberra­ções linguísticas. A língua deve ser viva, deve permitir exprimir a evolução da sociedade. Será aceitável que os nomes das profissões que existem nos dois gêneros tenham, ainda, valor diferente se empre­gados no masculino ou no femini­no? Por que cozinheiro designa um chef de cuisine e cozinheira, uma executante? Costureiro, um criador de moda, e costureira, uma execu­tante? A secretária, uma subordi­nada, o secretário, um dirigente? Isso se deve a um machismo linguístico e social, principalmente se considerarmos que a língua não é objeto estético nem patrióti­co, mas linguístico, que deve ser­vir, entre outros objetivos, à justiça social.
        A escritora femi­nista francesa Benoîte Groult subli­nha que o genérico “homens” pode englobar os homens e as mulhe­res ou um determinado grupo de homens. Mas em hipótese alguma pode referir um grupo composto ex­clusivamente por mulheres. Por outro lado, às mutilações sexuais femininas infligidas a milhões de mulheres e meninas – que vão de encontro aos direitos os mais elementares –, não cabe a ex­pressão “direitos do homem”, mas sim “direitos da pessoa”, bem mais adequada!

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

... para não desistir...


Depois de três anos off, volto a ativar este blog. 

Se me pergunto porque parei, não obtenho resposta convincente. 

Parei por preguiça? Parei por descrença? Parei por achar que o patriarcado será eterno e toda consciência feminista coletiva não será suficiente para reverter tal ordem tão bem estruturada ao longo da História?

Para não desistir deste ímpeto de retomada, melhor seguir outra linha de indagação: que tal voltar a escrever em meu blog?

Volto porque sou feita de questionamentos que me tiram o sono nas altas madrugadas. Às vezes, de manhã, já não lembro mais de nada. Às vezes o texto vai para o meu "Notas" no aparelho celular e até o transformo em matéria editável. 

Noutro dia, em curiosa sequência de fatos, minha juventude se fez presente. 
De manhã, caminhando pela Bartolomeu Mitre em direção à praia, tive a sensação de que o tempo não conta. Sentia-me leve e despojada nas Havaianas.
De noite, fui ao lançamento do livro de Samantha Gilbert - “Caminho Solo” - em que fala de sua coragem ao fazer o Caminho de São Thiago de Compostela.

“Para Comba, lembrança boa de uma moça loira, sabida e inteligente”.

A moça idealizada por Samanta traz à lembrança meu ativismo feminista.

Para não ficar só na lembrança dos tempos de descobertas e esperanças, retomo meu espaço de reflexão. E me junto ao coro feminino pela afirmação da História das Mulheres e pelo pleito tão simples de respeito à nossa liberdade de ser como somos: diferentes mas não desiguais.