domingo, 10 de março de 2013

GRAFITEIRAS CONTRA A VIOLÊNCIA


O nome de registro da moça é Panmela. O nome de artista, feminista e dona de seu nariz é Anarkia. Não sei porque, li “Anárkia”, assim, com a sílaba tônica antecipada. Sinto mais ritmo nesta pronúncia. Nada eu sabia da arte de Panmela  nem da ONG que dirige – “Rede Nami”, mina ao contrário, na linguagem de grafiteiras e grafiteiros. A instituição tem por objetivo divulgar os direitos das mulheres, com ênfase na luta contra a violência de que Panmela foi vítima aos vinte anos de idade. Hoje, com trinta e um, ela já tem seu trabalho reconhecido internacionalmente. Seus painéis em grafite estão espalhados pela cidade do Rio de Janeiro, como informa O Globo de 10/03/13. Recentemente, Panmela mudou-se da Penha, bairro onde nasceu, para o Rio Comprido para ficar mais perto do centro da cidade e por lá continuar pintando suas personagens, como a “Liberté”, uma mulher que está sempre acompanhada de um águia, símbolo da liberdade. “Percebi que podia me expressar pelo grafite. Foi aí que virei uma feminista e percebi coisas que jamais veria”, declara Anarkia ao citado jornal.

É pela arte com o grafite e não pelo discurso que Panmela toca a consciência das mulheres nas comunidades onde atua. Isto me faz pensar nas manifestações feministas dos anos 80. Nossa linguagem era predominantemente a do discurso.  Mas nele não ficou aprisionada. Com o spray usado pelas grafiteiras, feministas picharam os muros da cidade com os slogans mais significativos do movimento  -   “nosso corpo nos pertence”, “quem ama não mata”. Assim, foi lançada a campanha contra a violência doméstica a partir da onda de  assassinatos de mulheres, sendo então emblemático o caso de Angela Diniz.

A bem da verdade, a abordagem do tema da violência contra as mulheres ganhou curso depois da ruptura da hegemonia do Centro da Mulher Brasileira-CMB criado em 1975. Muitas de nós que chegamos ao movimento a partir da experiência de militância em partidos de esquerda tivemos dificuldades em acolher de pronto as propostas das feministas autônomas. No limiar dos anos 80, estas se retiraram do CMB e formaram o Coletivo de Mulheres que passou a conduzir a ação contra a violência doméstica.  A essa altura, eu já compreendia mais a fundo a questão feminista. Foi quando desconsiderei o conselho de um companheiro do Partido  – “afaste-se das feministas. Isto é coisa feita para dividir a esquerda e enfraquecer a luta geral, a luta de classes”. O fato é que acabei me afastando da organização partidária. Juntamente com outras advogadas feministas passei a participar do “S.O.S. Violência”, dando respaldo jurídico ao atendimento feito às vítimas da violência pelas feministas nos plantões do S.O.S. Mulher. Foi um caminho sem volta.  

Assim, até 1994, mantive-me diretamente envolvida nas vivências feministas, ainda que minha ação se exercesse principalmente na seara jurídica. Até então, o feminismo era naturalmente um movimento direcionado para as praças, para as ruas – o mesmo palco que hoje acolhe arte silenciosa e revolucionária de Anarkia e suas companheiras grafiteiras. Hoje, como observadora, mantenho-me atenta à trajetória da condição feminina. Ao meu modo, tento contribuir para a causa com minha escrita e assim sigo moldando a construção de minha consciência feminista. Fiquei muito feliz com a descoberta do trabalho de Anarkia. Faço minhas as palavras dela, ao fim da entrevista em O Globo: “ As piores coisas do mundo foram feitas em nome de verdades absolutas. Quero só mostrar que há escolhas. Várias escolhas a fazer.”    

segunda-feira, 4 de março de 2013

AS TAREFAS DOMÉSTICAS E A INVENCIBILIDADE DO MACHISMO



Dados estatísticos recentemente divulgados sobre o mercado de trabalho doméstico indicam uma queda acentuada da oferta de trabalho e a consequente elevação dos salários. Outro fato que poderá alterar o cenário deste mercado será a justa aprovação da emenda constitucional que põe fim à desigualdade de direitos trabalhistas fixada na Carta de 1988. Tais ocorrências  passam a exigir da sociedade, das empresas, governos e legisladores um olhar mais atento para inúmeras questões correlatas, sobretudo o drama vivido pelas mulheres para conciliar o desempenho profissional com as responsabilidades familiares.       

A comemoração do Dia Internacional da Mulher – 2013 é oportuna no sentido de sugerir mais aprofundada reflexão sobre as condições atuais de vida das mulheres brasileiras. Empregadas ou patroas estão de certa forma niveladas por angústias comuns resultantes dos focos de invencibilidade do machismo. A violência doméstica, por exemplo, não recua e atinge a todas as mulheres, independentemente de condição social.  

A nova realidade do mercado de trabalho doméstico nos leva de volta aos anos 1970, quando iniciado o ativismo feminista. Em plena ditadura militar, ousamos levantar bandeiras empunhadas por feministas do chamado “primeiro mundo”. Questões até então impensáveis até mesmo nos círculos das esquerdas brasileiras passaram a ser nossas “palavras de ordem”, a despeito do estranhamento que causávamos numa sociedade ainda presa aos valores conservadores e à educação das mulheres para a submissão.

Assumimos a denúncia da dupla jornada de trabalho. Arriscamos nossa própria integridade física para levar a público os casos de violência doméstica. Criamos no Rio de Janeiro o projeto das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher. Lançamos o lema “nosso corpo nos pertence”. Passamos em revista a legislação, apontando a necessidade de revisão das normas discriminatórias. Atuamos na Assembleia Constituinte com parcial êxito. Conduzimos a luta pela descriminalização do aborto.

Em verdade, propúnhamos uma ampla reeducação da sociedade, visando eliminar a cultura machista. Pleiteávamos políticas públicas de igualdade de tratamento nas relações de família, nas empresas, de modo que a mulher passasse a ser destinatária de plena cidadania. Cogitávamos de uma nova sociedade em que os homens viessem a descer do confortável patamar dos privilégios para compartilhar as responsabilidades na esfera doméstica. Na verdade, queríamos apagar da lembrança lemas repetidos por retrógrados maridos: - mulher, você não está educando bem a sua filha. Por que diabos aqueles pais não se atribuíam responsabilidades por suas filhas, empurrando para as mulheres obrigações, ao mesmo tempo, de serviçais e de educadoras? 

Não havia dúvida de que a nova cultura com que sonhávamos, poderia resultar na redução ou na extinção, a longo prazo, do trabalho doméstico remunerado, sobretudo pela evasão das trabalhadoras para outros setores mais promissores do mercado. É o que ora se sinaliza, sem que a democracia inaugurada nos anos 80 tenha incorporado os novos valores propostos pelo movimento feminista. Passam-se os anos e os pilares do machismo continuam intocáveis. Vivendo em família, os homens, mesmo os mais jovens, ainda não arregaçam as mangas para se meter na cozinha e na ária de serviço. Todo o sistema de suporte doméstico das famílias ainda se apoia direta ou indiretamente nas mulheres.

Se  passa a ser difícil contratar a empregada doméstica, já que os  custos se elevam pela baixa oferta de mão de obra, as mulheres é que serão ainda mais penalizadas ao ter que se ocupar das tarefas do lar, duplicando a sua carga de trabalho na solidão da área de serviço. Estatísticas indicam que entre mulheres e homens profissionalmente ocupados, o tempo semanal consumido com os encargos domésticos é diverso – evidentemente o das mulheres é muito maior.

O fato é que a originária pauta do movimento feminista permanece atual. Sem demérito de outros pontos igualmente importantes, é preciso insistir na mudança de atitude dos homens em relação às mulheres e à família; urge postular a redução da jornada de trabalho para homens e mulheres; é hora de exigir dos governos medidas que garantam o pleno acesso às creches e escolas públicas de boa qualidade em tempo integral; impõe-se, igualmente, a reformulação do sistema de transportes, pois, hoje, além da jornada laboral, perde-se longo tempo no ir e vir do trabalho.  

Nos anos 60, a escritora feminista Carmen da Silva descreveu magistralmente as crueldades do sistema machista. Pois, chegamos ao século XXI e os diagnósticos de Carmen, infelizmente, permanecem atualizados. Bastaria reeditar “A Arte de Ser Mulher” que teríamos um bom retrato de nossa realidade.