O movimento feminista defende a descriminalização do aborto, o que não equivale a incentivar a sua prática entre as mulheres. Muito longe disto. O feminismo trabalha com a ideia de que a mulher deva ter consciência de seu corpo, de sua saúde integral, de sua vida, de seus atos, das relações que ao longo da vida estabelece. O feminismo assim defende que a maternidade seja responsável, desprezando por inteiro a ideia de tê-la como uma fatalidade biológica. O fato é que em nenhum dos países onde o aborto deixou de ser
crime, a sua prática se viu aumentada. Deu-se exatamente o contrário, decaiu. A descriminalização do aborto passa a permitir que a intervenção seja feita como demais atendimentos da área de saúde, inclusive em órgãos públicos, levando-se em conta a assistência integral que deve ser garantida à mulher que,
por determinada circunstância de sua vida, não pode ser mãe. Eis
uma decisão que a vida impõe e não adianta fazer de conta que isto não
acontece. Não é justo que as mulheres sejam condenadas a dar seguimento a
uma gravidez que não poderia ter acontecido. A maternidade deve ser uma escolha, um ato de consciência, já que se trata de gerar e parir um ser destinatário de cuidados e carinhos - um ser que demandará por tempo indefinido imensas responsabilidades - afetivas, psicológicas, educacionais e materiais.
A interrupção da
gravidez não pode ser tida como uma questão de polícia. É necessário que o
Estado, ao contrário de punir, ofereça seus serviços de saúde para garantir às
mulheres o direito de contracepção, neste incluído o direito de interromper a
gravidez, ajudando-as, inclusive a decidir, mediante exame de todas as
condições envolvidas, sobretudo de saúde física e psicológica, quanto a ser possível ou não determinada interrupção. E reste claro que a última palavra deve ser
sempre da mulher, depois que lhe tenham sido prestadas todas as informações
pertinentes ao seu caso. A mulher só recorre ao aborto
por alguma razão muito forte, não o faz por motivo fútil. O fato de o aborto ser crime somente torna a
situação mais difícil e perigosa, não impede
que as mulheres o pratiquem. Ao penalizar criminalmente a
interrupção da gravidez, a lei vigente é que está decidindo sobre a vida das
mulheres, sonegando-lhes a assistência que se faria necessária num momento crucial de suas vidas. Bem se sabe das dramáticas consequências do aborto clandestino, via de regra
feito em condições precárias, principalmente pelas mulheres pobres, entregues
quase sempre a médicos inescrupulosos ou a pessoas que sequer têm formação para
tal procedimento. É muito comum também a prática do auto-aborto, com
consequências quase sempre desastrosas.
Toda lei é uma convenção. E só é
crime o que a lei assim define. Em 1940, o legislador convencionou incluir a
interrupção da gravidez no rol dos crimes, provavelmente, atendendo à pressão
de instituições religiosas que querem impor a todas e todos o que cabe exigir
apenas dos seus fiéis. Era um tempo em que o Estado ainda se confundia com a(s) Igreja(s). Hoje, afirma-se o princípio do Estado laico. Por diversos caminhos,
chegamos a uma nova consciência que nos permite deslocar a interrupção da
gravidez da esfera criminal para a esfera da assistência integral à saúde da
mulher. A verdade é que o fato de o aborto ser crime não impede a sua prática.
Eis uma questão que foge à letra fria da lei. E toda
mulher, em sã consciência, sabe do que aqui se fala. Sabe do drama de ser
obrigada a parir um ser indesejado. É preciso acabar com a
hipocrisia de supor que toda gravidez será incondicionalmente
desejada. Só procura o aborto a mulher que por razão de foro íntimo sabe que não pode ser mãe. E é cruel tomar sua razão como um capricho. O conceito de maternidade responsável deve prevalecer sobre a crença da maternidade como fatalidade biológica. A prática da maternidade responsável impõe que haja uma alternativa para a gravidez que acontece de modo fortuito.
A descriminalização do aborto significa apenas a retirada do aborto do rol dos crimes. Não induz nem obriga a sua prática. É, sobretudo, uma questão de saúde pública. O importante é garantir que as mulheres possam exercer a maternidade responsável, compreendendo-a e assumindo-a como uma verdade que se inscreve para sempre em suas vidas. O direito à maternidade responsável inclui o direito à contracepção e à possibilidade de interrupção da gravidez, nas condições clinicamente admissíveis. O Estado Democrático de Direito proclamado em nossa Constituição não comporta a ideia de que dogmas religiosos possam decidir sobre a vida de todas as mulheres. O Estado é laico, ou seja, a verdade das Igrejas não deve ser imposta como lei para todas e todos. Sejamos livres para decidir sobre nossas vidas.
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