O Supremo Tribunal Federal recebeu em 2010 uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 4.424), na qual a Vice-Procuradora Geral da República, Dra. Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira e o Procurador Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel dos Santos, como requerentes, pedem que a Corte firme interpretação por meio da qual venha a declarar a inconstitucionalidade da aplicação da Lei 9.099/95, que criou os juizados especiais de pequenas causas cíveis e criminais, aos casos de violência doméstica definidos no artigo 7º, da Lei 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, para que prevaleça o disposto em seu artigo 41, que veda a aplicação da lei dos juizados de pequenas causas aos crimes praticados na seara da violência doméstica e familiar contra a mulher.
É que, em vista de conflito de entendimento delineado pelo confronto dos previstos nos artigos 12, I e 16 e 41, da mesma Lei Maria da Penha, Cortes judiciais, inclusive o STF, vêm acolhendo entendimento que desconsidera a previsão impeditiva do artigo 41, admitindo, assim, a aplicação na esfera da violência doméstica da lei das pequenas causas criminais (delitos de menor potencial ofensivo), privilegiando-se: a primordial tentativa de conciliação; a exigência de representação formal da ofendida própria dos crimes de ação pública condicionada, ou seja, a ação penal somente pode ser aberta pelo Ministério Público com expressa concordância da ofendida; a possibilidade de cominação de pena alternativa (cesta básica, por exemplo).
De tal modo, nos casos das chamadas “lesões leves” tidas como praticadas no âmbito doméstico contra a mulher, a Justiça vem entregando ao crivo das vítimas o destino do agressor, supondo, provavelmente que das mulheres ofendidas é de se esperar o gesto magnânimo de evitar a sujeição do agressor à ação criminal, em defesa da família, da força de sua tradição, para que os filhos sejam poupados de ver o pai atrás das grades, etc. Isto me faz imediatamente lembrar um samba que diz em sua parte final:
“... a mulher que é mulher
não deixa o lar à toa
a mulher que é mulher
se o homem errar, perdoa...”
(“A Mulher que é Mulher”, de Klecius Caldas e Armando Cavalcanti).
No embalo da melodia carnavalesca, poder-se-ia concluir: se a mulher leva uma bolacha na cara, coisa “leve” cujo inchaço em tons roxos em poucos dias se esvanecerá, para que levar o agressor à ação penal? Seria simples se não fosse sério. Jamais será cômico porque é simplesmente trágico. Quantos não foram os casos de violência doméstica atendidos pelas feministas nos anos 80 em que o bofetão ou o chute na canela foram só o começo de uma conduta ofensiva continuada e potencialmente grave, a culminar, não raro, em assassinato?
A Lei Maria da Penha entrou em vigor em 2006, resultando de um longo e complexo debate iniciado na Assembléia Nacional Constituinte, em 1987/88. O movimento de mulheres esteve vivamente presente nos embates da Constituinte. Fomos chamadas a dizer sobre a nossa experiência de ouvir as mulheres (e já o fazíamos desde 1975, com a retomada do feminismo em suas novas formulações - um passo à frente em relação às sufragistas, às ações das organizações de mulheres pelos direitos de todos, por exemplo, contra a carestia, que marcaram a primeira metade do século XX). Na nova onda feminista, as velhas práticas de violências domésticas saíram do silêncio e a abordagem deste tema pode ser considerada como a maior contribuição que o movimento tenha dado à sociedade brasileira e à difícil construção de seu caminho para a democracia.
Nossos estudos sobre os direitos da mulher sob o enfoque dos novos temas feministas, o atendimento nos grupos “SOS-Mulher” nos credenciaram a atuar junto ao Congresso Constituinte. Fomos convidadas ao expor nas comissões temáticas, fomos ouvidas e Carta aprovada em 5 outubro de 1988 contemplou de modo textual significativas sugestões, inclusive a de inclusão do § 8º no artigo 226:
§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Este princípio corporifica e reconhece a violência no âmbito das relações de família – o que o feminismo anteriormente conceituou como “violência doméstica”. Este é o princípio constitucional em vigor que autorizou a aprovação da Lei Maria da Penha, criando esta mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
O movimento feminista jamais se iludiu quanto a considerar que a Lei Maria da Penha, por si só, viesse a eliminar a cultura de discriminação contra a mulher, da qual resulta a prática da violência doméstica. Também não se supôs que a Lei Maria da Penha viesse a ter curso pacífico em sua interpretação e aplicação nas instâncias da Justiça. Como não é fácil derrogá-la, pois tem sua constitucionalidade assentada no referido inciso 8º, do artigo 226, da CF/88, parte-se para a estratégia de comê-la pelas beiradas.
A lei 9.099/95 estabeleceu os juizados especiais criminais para processar e julgar as “infrações penais de menor potencial ofensivo”, assim consideradas pela mesma norma como “as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.”
Na peça inicial da referida ADI 4424, a Procuradoria Geral da República sustenta que, antes do advento da Lei Maria da Penha, nos juizados especiais criminais, 70% dos casos envolviam situações de violência doméstica contra mulheres e o resultado, na grande maioria, era a “conciliação”. Logicamente, até 2006, nesta esfera, o procedimento a seguir só poderia ser aquele previsto na Lei 9.099/95. A Procuradoria considera que a sujeição ao procedimento dos juizados, “desestimulava a mulher a processar o marido ou companheiro agressor, e reforçava a impunidade presente na cultura e prática patriarcais. Tudo somado, afirmam, “ficou banal a prática de violência contra as mulheres.”
A parir de 2006, a situação mudou e as ocorrências criminais tipificadas como violência doméstica passaram a ter regras procedimentais próprias, foros próprios. O artigo 41, da Lei Maria da Penha prevê expressamente que a tais casos não se aplicam as regras da lei dos juizados de pequenas causas. É, pois, de se considerar um retrocesso a aplicação da 9.099 os crimes da esfera da violência doméstica. Talvez porque seja mesmo difícil medir o grau de potencial lesivo das agressões nascidas na convivência familiar, nas relações conjugais e semelhantes. Devemos, assim, apoiar a iniciativa da Procuradoria Geral da República que assim bem sintetiza:
“A tese sustentada na presente ação é de que a única interpretação compatível com a Constituição é aquela que entende ser o crime de ação penal pública incondicionada” (referindo-se aos casos de violência doméstica). “A interpretação que faz a ação penal depender de representação da vítima, por outro lado, importa em violação ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), aos direitos fundamentais de igualdade (art. 5º, I) e de que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art, 5º, XLI), à proibição de proteção deficiente dos direitos fundamentais, e ao dever do Estado de coibir e prevenir a violência no âmbito das relações familiares (art. 226, § 8º).
Excelentíssimas Senhoras, Excelentíssimos Senhores Ministros do Supremo Tribunal Federal, salvem a Lei Maria da Penha!
Parabéns pelo artigo.
ResponderExcluirEU E O MEU BLGO APOOIAMOS ESTA CAUSA
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