sexta-feira, 29 de abril de 2011

CARMEN DA SILVA, NOSSA RAINHA DA OUSADIA


“Não é necessária muita perspicácia para perceber sintomas de insatisfação nas mulheres de hoje. Casadas e solteiras, ociosas e trabalhadoras, estudantes e profissionais, artistas e donas de casa, todas elas em algum momento deixam transparecer resquícios de frustração, um desejo ora nostálgico, ora invejoso, de outra existência diferente, outro caminho distinto ao que escolheram – como se a felicidade estivesse lá. Pareceria que lá – o lado oposto, o inatingível – se encontrasse tudo o que é belo e desejável, tudo o que nos proporcionaria um verdadeiro senso de realização.” (Carmen da Silva, A Arte de Ser Mulher, Ed. Civilização Brasileira, 1966, pg. 03)

Fui apresentada à Carmen da Silva no ano de 1966, quando um pretendente a namorado presenteou-me com o livro “A Arte de Ser Mulher - um guia moderno para o seu comportamento”. Eu contava 21 anos e não tomara conhecimento da coluna assinada pela autora e publicada na revista “Claudia” desde 1963. Em casa de minha mãe e meu pai não circulavam revistas femininas. Não havia renda para os extras. Pela mesma razão, eu não freqüentava salões de beleza, onde revistas como “Claudia”, eram, desde então, oferecidas ao entretenimento das clientes. Minha ida ao salão só ocorria quando havia baile, impondo-se elevar o cabelo em coque estupendo com a ajuda de uma bucha de Bom Bril. Outra opção para armar o monumento era tecer um murundu com parte dos cabelos e usar a parte restante para cobrir a base e decorar o penteado. Mas este procedimento só era possível às meninas com cabelos grossos e fartos. Para finalizar a obra, lançava-se uma boa chuva de laquê que geralmente alcançava os olhos que, assim, já chegavam irritados à festa. Daí para cair no choro se por uma sessão inteira de música nenhum cadete tirasse a moça para dançar, não faltava muito. Ai, a vida apertada de uma moça bem comportada! Fora os cabelos, nada que se assemelhasse aos rituais da  Amy Winehouse!

Meu paquera devorava manuais marxistas, mas certamente ainda não havia lido o livro de Carmen. Se o tivesse lido, teria escolhido outro título. Mal sabia a bomba que punha em minhas mãos! O livro é apresentado pela Editora Civilização Brasileira como integrante da “Biblioteca da Mulher Moderna”, seção indicada como “entretenimento ou ilustração para um público feminino esclarecido”. Entretanto, a obra de Carmen em muito transcende as obras de entretenimentos e os escritos de aconselhamento ou consultório sentimental, como reconhece o próprio editor, Edison Carneiro, chamando a atenção de leitoras e leitores para os comentários de Carmen ao longo dos textos no sentido de propor e discutir a independência da mulher.
    
            Com o requinte de uma escrita bem humorada, com vertical compreensão das relações humanas, com sólida consciência feminista, logo no primeiro artigo - “A Protagonista” - Carmen vai à questão fundamental: sejamos “protagonistas duma aventura apaixonante e singular: nossa própria vida.” E já neste primeiro grupo de artigos sob o título “Uma pauta para viver melhor”, Carmen lança o desafio: “Você vive ou vegeta?” 

Entrei na universidade em 1967. Participei do movimento estudantil. Em 1968, fui eleita representante dos alunos do curso de Letras da antiga UEG para o Congresso da UNE, em Ibiúna. Fui presa, é claro. O meu namoro com o camarada comunista corria leve e promissor. Em plena ditadura, nossa relação rescendia à liberdade.  Compartilhávamos o gosto pela boa música, o sonho da revolução socialista, os desafios intelectuais das sessões de arte do cinema Paissandu. Casamos. Em 1970, realizei meu inadiável desejo de ser mãe. Um ano depois, estávamos separados. 
         
As questões levantadas por Carmen em “A Arte de Ser Mulher” até então não me inquietavam. O foco da militância de esquerda de que eu participava era mesmo a luta de classes, era o empenho na manutenção da frente ampla contra o regime, sem chances para temas que as nossas lideranças viessem a considerar divisionistas. Na verdade, foi preciso casar, separar, casar de novo, parir quatro adoráveis crias, para sentir na pele as situações descritas por Carmen na obra referida.

Em 1975 o feminismo eclode no Rio. Como não poderia deixar de ser, Carmen da Silva à frente, a nos apontar com inteligência os sutis mecanismos das desigualdades de gênero. O impulso do movimento feminista veio do exterior, mas é inegável que por aqui encontrou eco e se disseminou na rica seara das reflexões de Carmen da Silva, com sua facilidade de tocar a consciência da mulher através de sua escrita palatável e não menos contundente.
    
De início, as mulheres de esquerda aderiram timidamente ao movimento. As feministas, como Carmen, eram as outras. Em verdade, eram livres para opinar e protagonizar bandeiras, independentemente da aprovação dos comitês centrais dos partidos. Danda Prado, chegada de Paris, aportou em nossas reuniões e, com seu jeito sempre gentil, nos intimou: o que vocês fazem aqui não é feminismo. Se não falam de violência doméstica e de descriminalização do aborto, não são feministas. Muitas mulheres optaram por seus partidos e se afastaram. Outras tantas ficaram e entraram para a história da construção da nova cidadania da mulher brasileira. Fiz ouvidos de mercador às advertências de meus companheiros de partido e formei com as feministas. Foi um caminho sem volta do qual muito me orgulho. 

O livro de Carmen, o presente do namorado, eu perdi. Pode ter sido na mudança forçada em 1969, quando a polícia da ditadura impôs urgente desmonte do apartamento onde o casal morava. Mas, Carmen da Silva entrou em minha vida e em meu universo afetivo através do movimento. Desde então, sempre anda por perto a instigar minha consciência feminista. Recentemente, via internet, encontrei um exemplar do livro num sebo de Porto Alegre. Vejo-o agora sobre minha mesa de trabalho em bom estado de conservação. Como bem conservada está a minha memória das noites de boa conversa com Carmen em casa de Mariska Ribeiro, onde muitas de nossas espetaculares ações foram articuladas. 
     
Carmen da Silva nasceu no Rio Grande do Sul em 1919. De lá partiu ainda jovem em busca de formação intelectual e independência. Tornou-se jornalista, psicanalista, escritora. Foi aclamada e “coroada” no dia 8 de março de 1983 como a grande dama do feminismo brasileiro, em expressiva passeata de mulheres pelas ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro. Carmen faleceu em 29 de abril de 1985, deixando para todas nós, mulheres, um bom “guia” de busca de nossas verdades e o exemplo de que é possível assumir o leme da condução de nossas vidas, com determinação e ousadia.        

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Consciência Feminista


Ontem, em nosso habitual café ao cair da tarde, comuniquei à minha amiga Eliane Sondermann que, depois de um agradável encontro com as feministas Danda Prado e Zezé Lima, eu estava inaugurando um blog denominado “Consciência Feminista”, com o objetivo de criar uma espécie de observatório de viés feminista sobre fatos, noticias, literatura, arte, cultura, etc. Eliane questionou a eficácia do meu blog, indagando: mas já não está tudo superado? Enfaticamente, respondi: não! Ao que ela observou: então não sei bem o que é feminismo. A nossa conversa só me veio a confirmar a necessidade de manter acesa a fogueira de questionamentos que nos anos 70/80 levou às ruas mulheres brasileiras, como anteriormente já levara européias e americanas.
No Brasil, em muitos aspectos da cidadania, a situação mudou para melhor. Afinal, seria estranho que, por exemplo, permanecesse em vigor a chefia do homem na sociedade conjugal, depois de longos anos de atuação quase diária das advogadas feministas pela revogação da discriminação prevista no Código Civil de 1916. Deste trabalho na seara jurídica e de tudo mais que se fez no movimento feminista nos anos 70/80 resultou a declaração de igualdade na Constituição de 1988, o que veio a ensejar a revisão do Código Civil (mesmo assim somente em 2002) e de demais normas de caráter discriminatório. Conseguimos inserir na Constituição de 1988 (§ 8º, do art. 226) que o Estado deve garantir “assistência à família na pessoa de cada um dos membros que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.” Com base neste princípio constitucional foi possível (e só em 2006!) aprovar a Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Note-se que não é desprezível a posição de juristas e magistrados que hoje insistem na revogação desta lei, sob o argumento de que fere o princípio constitucional da igualdade.
Aí a gente olha em volta, observa a vida da geração de mulheres que nos sucede, lê o jornal, vê a TV e indaga: quem disse que está tudo resolvido?  Quem disse que a conquista de igualdades jurídicas equivale a dar por superados tantos dramas que marcam o cotidiano das mulheres? Como é possível dispensar o feminismo e tê-lo como descabida insistência de meia dúzia de eternas insatisfeitas, quando persistem notícias de crimes horrendos praticados por homens contra mulheres?  
O olhar feminista deste blog é exatamente o que pretende captar o que há  por trás dos palcos da igualdade jurídica. O que leva, por exemplo, o maníaco de Realengo a escolher como alvo a cabeça e o coração principalmente das meninas? O que leva uma mulher de baixa renda, mãe de dez crianças, a jogar no lixo a décima primeira - uma menina  -  indesejada por razões que obviamente transcendem os limites da pura insanidade? O ato teria sido cometido se o aborto não fosse considerado um delito e pudesse ser praticado livremente em rede de saúde pública, com assistência médica e psicológica?  
Como é possível ter o feminismo como coisa do passado, quando vemos mulheres casadas e mães de filhos ainda prioritariamente incumbidas dos comandos e afazeres domésticos? E as empregadas domésticas que não têm os mesmos direitos que as demais trabalhadoras? E as tais creches públicas previstas na Constituição para todas as crianças de zero a seis anos? Alguém sabe apontar onde estão? E as denúncias de inexistência de leitos para os partos nas redes públicas de saúde de tantas cidades em todo o país?
Fica-me a impressão de que os silicones que moldam a atual silhueta da condição da mulher escondem, sim, muitos problemas. Eis o que pretendo tentar entender, escrevendo – o que está ao meu alcance fazer na atual etapa de minha vida. Desejo compartilhar na internet as minhas inquietações. Quem sabe, chegar às mulheres que navegam sob a ditadura do corpo esbelto, às tantas mulheres que sobrevivem aos novos protocolos da vida pública, das relações conjugais e das experiências maternais, escondendo na alma a mesma indignação que moveu as ações e a escrita da inglesa Mary Wollstonecraft (1759-1797) que, ao publicar “A Vindication of the Rights of Woman”, lançou ao mundo os fundamentos do feminismo que ainda hoje move a consciência de mulheres que não se contentam com liberdades parciais e tantas vezes maquiadas.