quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Carmen da Silva, nossa rainha da ousadia


Não é necessária muita perspicácia para perceber sintomas de insatisfação nas mulheres de hoje. Casadas e solteiras, ociosas e trabalhadoras, estudantes e profissionais, artistas e donas de casa, todas elas em algum momento deixam transparecer resquícios de frustração, um desejo ora nostálgico, ora invejoso, de outra existência diferente, outro caminho distinto ao que escolheram – como se a felicidade estivesse lá. Pareceria que lá – o lado oposto, o inatingível – se encontrasse tudo o que é belo e desejável, tudo o que nos proporcionaria um verdadeiro senso de realização.” (Carmen da Silva, A Arte de Ser Mulher, Ed. Civilização Brasileira, 1966, pg. 03)

Fui apresentada à obra de Carmen da Silva no ano de 1966, quando um pretendente a namorado presenteou-me com o livro “A Arte de Ser Mulher - um guia moderno para o seu comportamento”. Eu contava vinte e um anos e ainda não tomara conhecimento da coluna que a autora mantinha na revista “Claudia” desde 1963. Em casa de minha mãe e meu pai não circulavam revistas femininas. Não havia renda para os extras. Pela mesma razão, eu não freqüentava salões de beleza, onde revistas como “Claudia”, eram, desde então, oferecidas ao entretenimento das clientes. Minha ida ao salão só ocorria quando havia baile, impondo-se elevar o cabelo em coque estupendo com a ajuda de uma bucha de ariar panelas. Outra opção para armar o monumento era tecer um murundu com parte dos cabelos e usar a parte restante para cobrir a base e decorar o penteado. Mas este procedimento não condizia com meus cabelos finos  e pouco fartos. Para finalizar a obra, lançava-se uma chuva de laquê, de modo que os olhos já chegavam irritados à festa. E, passada uma longa sessão de música sem que nenhum cadete tirasse a moça para dançar, a noite acabava em choro no escondidinho do banheiro. Ai, como era  apertada a vida de uma moça bem comportada!

 Meu paquera talvez não soubesse a bomba que me punha em mãos! O livro é apresentado pela Editora Civilização Brasileira como integrante da “Biblioteca da Mulher Moderna”, seção indicada como “entretenimento ou ilustração para um público feminino esclarecido”. Entretanto, a obra de Carmen em muito transcende as obras de entretenimentos e os escritos de aconselhamento ou consultório sentimental, como reconhece o próprio editor, Edison Carneiro, chamando a atenção de leitoras e leitores para os comentários de Carmen ao longo dos textos no sentido de propor e discutir a independência da mulher.    
     
      Com o requinte de uma escrita bem humorada, com vertical compreensão das relações humanas, com sólida consciência feminista, logo no primeiro artigo - “A Protagonista” - Carmen vai à questão fundamental: sejamos “protagonistas duma aventura apaixonante e singular: nossa própria vida.” E já neste primeiro grupo de artigos sob o título “Uma pauta para viver melhor”, Carmen lança o desafio: “Você vive ou vegeta?”

Entrei na universidade em 1967. Participei do movimento estudantil. Em 1968, fui eleita representante dos alunos do curso de Letras da antiga UEG para o Congresso da UNE, em Ibiúna. Fui presa, é claro. O meu namoro com o camarada comunista corria leve e promissor. Em plena ditadura, nossa relação rescendia à liberdade.  Compartilhávamos o gosto pela boa música, o sonho com a revolução socialista, os desafios intelectuais das sessões de arte do cinema Paissandu. Casamos. Em 1970, realizei meu inadiável desejo de ser mãe. Um ano depois, estávamos separados.          

Até então, as questões levantadas por Carmen em “A Arte de Ser Mulher” não me inquietavam. Meu foco era a militância de esquerda, era a denominada “luta de classes”, era a construção da frente ampla contra o regime militar, sem chances para os temas que as lideranças viessem a considerar divisionistas. Na verdade, foi preciso casar, separar, casar de novo, parir quatro adoráveis criaturas, para sentir na pele as situações descritas por Carmen em a Arte de Ser Mulher.

Em 1975 o feminismo eclode no Rio. Carmen da Silva já nos apontara com inteligência os sutis mecanismos das desigualdades de gênero. O impulso do movimento feminista veio do exterior, mas é inegável que por aqui encontrou eco e se disseminou por ação de Carmen da Silva, por sua radiosa presença, por sua escrita palatável e não menos contundente.    

De início, as mulheres de esquerda aderiram timidamente ao movimento. As feministas, como Carmen, eram as outras. Em verdade, eram livres para opinar e protagonizar bandeiras, independentemente da aprovação dos comitês diretivos dos partidos. Danda Prado, chegada de Paris em 1979, aportou em nossas reuniões e, com seu jeito sempre gentil, nos intimou: o que vocês fazem aqui não é feminismo. Se não falam de violência doméstica e de sexualidade feminina e descriminalização do aborto, não são feministas. Muitas mulheres optaram por seus partidos e se afastaram do perigo divisionista incitado pelas feministas autônomas. Outras tantas ousaram divergir. Foi o meu caso. Desconsiderei as advertências dos companheiros do PCB e, de corpo e alma, formei com as feministas - um caminho sem volta.

O livro de Carmen, presente de meu namorado, marido por curto período e amigo de toda a vida, eu perdi. Pode ter sido em 1969, quando a polícia da ditadura impôs urgente desmonte do apartamento onde residíamos. Mas, Carmen da Silva entrou em minha vida e em meu universo afetivo. Anda sempre por perto a instigar minha consciência feminista. Recentemente, via internet, encontrei um exemplar de “A Arte de Ser Mulher” num sebo de Porto Alegre. Vejo-o agora sobre minha mesa de trabalho em bom estado de conservação, como bem conservada está minha lembrança das noites de boa conversa com Carmen em casa de Mariska Ribeiro, onde muitas de nossas ações foram articuladas.      

Carmen da Silva nasceu no Rio Grande do Sul em 1919. De lá partiu ainda jovem em busca de formação intelectual e independência. Tornou-se jornalista, psicanalista, escritora. No dia 8 de março de 1983 foi coroada e aclamada em passeata pelas ruas do Rio como a grande dama do feminismo brasileiro. Faleceu em 29 de abril de 1985, deixando para todas nós, mulheres, um guia para a busca de nossas verdades e, mais que isso, o exemplo de que é possível assumir o leme de nossas vidas, com determinação e ousadia.        
                             (Rio de Janeiro, 29/04/2011 – revisado em 20/04/2013)

             

domingo, 23 de junho de 2013

O Estado laico e a descriminalização do aborto

O movimento feminista defende a descriminalização do aborto, o que não equivale a incentivar a sua prática entre as mulheres. Muito longe disto. O feminismo trabalha com a ideia de que a mulher deva ter consciência de seu corpo, de sua saúde integral, de sua vida, de seus atos, das relações que ao longo da vida estabelece. O feminismo assim defende que a maternidade seja responsável, desprezando por inteiro a ideia de tê-la como uma fatalidade biológica. O fato é que em nenhum dos países onde o aborto deixou de ser crime, a sua prática se viu aumentada. Deu-se exatamente o contrário, decaiu. A descriminalização do aborto passa a permitir que a intervenção seja feita como demais atendimentos da área de saúde, inclusive em órgãos públicos, levando-se em conta a assistência integral que deve ser garantida à mulher que, por determinada circunstância de sua vida, não pode ser mãe. Eis uma decisão que a vida impõe e não adianta fazer de conta que isto não acontece. Não é justo que as mulheres sejam condenadas a dar seguimento a uma gravidez que não poderia ter acontecido. A maternidade deve ser uma escolha, um ato de consciência, já que se trata de gerar e parir um ser destinatário de cuidados e carinhos - um ser que demandará por tempo indefinido imensas responsabilidades - afetivas, psicológicas, educacionais e materiais.

A interrupção da gravidez não pode ser tida como uma questão de polícia. É necessário que o Estado, ao contrário de punir, ofereça seus serviços de saúde para garantir às mulheres o direito de contracepção, neste incluído o direito de interromper a gravidez, ajudando-as, inclusive a decidir, mediante exame de todas as condições envolvidas, sobretudo de saúde física e psicológica, quanto a ser possível ou não determinada interrupção. E reste claro que a última palavra deve ser sempre da mulher, depois que lhe tenham sido prestadas todas as informações pertinentes ao seu caso. A mulher só recorre ao aborto por alguma razão muito forte, não o faz por motivo fútil. O fato de o aborto ser crime somente torna a situação mais difícil e perigosa, não impede que as mulheres o pratiquem. Ao penalizar criminalmente a interrupção da gravidez, a lei vigente é que está decidindo sobre a vida das mulheres, sonegando-lhes a assistência que se faria necessária num momento crucial de suas vidas. Bem se sabe das dramáticas consequências do aborto clandestino, via de regra feito em condições precárias, principalmente pelas mulheres pobres, entregues quase sempre a médicos inescrupulosos ou a pessoas que sequer têm formação para tal procedimento. É muito comum também a prática do auto-aborto, com consequências quase sempre desastrosas.

Toda lei é uma convenção. E só é crime o que a lei assim define. Em 1940, o legislador convencionou incluir a interrupção da gravidez no rol dos crimes, provavelmente, atendendo à pressão de instituições religiosas que querem impor a todas e todos o que cabe exigir apenas dos seus fiéis. Era um tempo em que o Estado ainda se confundia com a(s) Igreja(s). Hoje, afirma-se o princípio do Estado laico. Por diversos caminhos, chegamos a uma nova consciência que nos permite deslocar a interrupção da gravidez da esfera criminal para a esfera da assistência integral à saúde da mulher. A verdade é que o fato de o aborto ser crime não impede a sua prática. Eis uma questão que foge à letra fria da lei. E toda mulher, em sã consciência, sabe do que aqui se fala. Sabe do drama de ser obrigada a parir um ser indesejado. É preciso acabar com a  hipocrisia de supor que toda gravidez será incondicionalmente desejada. Só procura o aborto a mulher que por razão de foro íntimo sabe que não pode ser mãe. E é cruel tomar sua razão como um capricho. O conceito de maternidade responsável deve prevalecer sobre a crença da maternidade como fatalidade biológica. A prática da maternidade responsável impõe que haja uma alternativa para a gravidez que acontece de modo fortuito.  

A descriminalização do aborto significa apenas a retirada do aborto do rol dos crimes. Não induz nem obriga a sua prática. É, sobretudo, uma questão de saúde pública. O importante é garantir que as mulheres possam exercer a maternidade responsável, compreendendo-a e assumindo-a como uma verdade que se inscreve para sempre em suas vidas. O direito à maternidade responsável inclui o direito à contracepção e à possibilidade de interrupção da gravidez, nas condições clinicamente admissíveis. O Estado Democrático de Direito proclamado em nossa Constituição não comporta a ideia de que dogmas religiosos possam decidir sobre a vida de todas as mulheres. O Estado é laico, ou seja, a verdade das Igrejas não deve ser imposta como lei para todas e todos. Sejamos livres para decidir sobre nossas vidas.             

sexta-feira, 24 de maio de 2013

DOMÉSTICAS: EQUÍVOCOS NA PROPOSTA DE REGULAMENTAÇÃO


A proposta apresentada ao Congresso pelo senador Romero Jucá(PMDB/RR) referente à regulamentação da igualdade de direitos introduzida na Constituição pela PEC das Domésticas contém alguns absurdos relativos à regra da indenização compensatória.

Diz a Constituição, em seu artigo 7º, inciso I:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;

Ora, o texto acima indicado não deixa dúvidas: o empregador somente pagará uma indenização ao empregado ou empregada em caso de despedida não motivada por algum fato relacionado com a prestação de trabalho. É preciso que se saiba que este direito é remanescente do antigo sistema de estabilidade previsto na CLT, o qual veio a ser revogado com a instituição do FGTS em 1966. Evidentemente, a questão da estabilidade voltou à discussão na Assembleia Nacional Constituinte e, ante aos impasses políticos instaurados nos debates, a solução foi adotar a figura da “relação de emprego protegida contra a despedida arbitrária ou sem justa causa”, a par dos regimes das estabilidades provisórias igualmente instituídos na Constituição em 1988. Até hoje prevalece o critério disposto no art. 10, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, firmado na lei do FGTS que cria a obrigação patronal de pagar indenização compensatória de 40% do montante do FGTS, no caso de despedida imotivada, arbitrária. Este direito, erroneamente, passou a ser denominado como “multa”. Mas, em sua correta acepção, ao contrário de multa, trata-se de uma indenização relacionada com o ato da dispensa, quando cometido sem que haja uma explícita motivação, isto é, uma causa. 

Portanto, na mais pura lógica do Direito, não faz o menor sentido pagar uma indenização quando o contrato se desfaz por iniciativa do empregado, da empregada e, mais ainda, quando a despedida se deve à prática de falta grave – justa causa – como propõe o senador Romero Jucá. Com todas as vênias, o senador incorre em grave equívoco ao propor a obrigação de pagar a indenização compensatória em caso de pedido de demissão por parte do empregado ou empregada e ao admitir que, mesmo em certas práticas de “justa causa” (dentre as  hipóteses previstas na CLT) a verba seja paga. Puro absurdo que contraria a lógica da própria Constituição. Primeiramente porque uma lei complementar não tem o condão de modificar a Constituição, o que ocorreria, caso o Congresso viesse a acolher a proposta aqui comentada. 

Ademais, não faz sentido obrigar o empregador a recolher ao FGTS, ao longo do contrato, o tal percentual cogitado na proposta de 3,2% do salário, além dos 8%, sem que se saiba como será o desfecho do contrato. O Direito do Trabalho, a ser justo, deve trabalhar com a presunção da continuidade dos contratos de emprego. Neste princípio se ancorava a original previsão da estabilidade decenal. Não é, pois, correto, nem justo, alterar a Constituição por meio de lei complementar para impor uma regra contrária aos princípios firmados não só na CLT, como na jurisprudência trabalhista e nas interpretações doutrinárias.

Frise-se - somente cabe pagar a indenização compensatória equivalente a 40% do FGTS nos casos de despedida unilateral sem causa, livre arbítrio patronal. Declarada a igualdade de direitos pela aprovação da PEC das Domésticas, deve se aplicar às trabalhadoras domésticas a regra tal como já está disciplinada para os demais trabalhadores e trabalhadoras. A propósito, afirme-se que também não é justo reduzir o percentual de 40% somente para as domésticas. Estar-se-ia quebrando a igualdade declarada. Da mesma forma, não cabe indenizar a empregada que pede demissão, que quer seguir outro rumo, sem que a patroa tenha dado alguma causa para a sua decisão de sair do emprego. A proposta de indenizar em caso de determinadas práticas de justa causa é simplesmente absurda, deve ser de plano rechaçada pelo Congresso, como a de ser  rechaçada pelos profissionais do direito da área trabalhista.


A sociedade, assim, espera que o Congresso saiba trazer o trem de volta ao trilho para melhor decidir sobre a matéria, em respeito à Constituição e aos princípios aplicáveis às relações de trabalho.  

sexta-feira, 5 de abril de 2013

DOMÉSTICAS: TODO PROFISSIONALISMO AGORA É POUCO...


A aprovação da PEC das domésticas desperta a discussão sobre a realidade das mulheres brasileiras, sobretudo o grande contingente da classe média que diariamente depende das empregadas domésticas para assumir responsabilidades profissionais. O governo federal faz empenho em ratificar a Convenção 189 da OIT sobre o trabalho doméstico. Parabéns. Mas por que até hoje não se ocupou da Convenção 156 da OIT, que trata da igualdade de oportunidades e de tratamento para  trabalhadores e trabalhadoras, visando conciliar a vida profissional com as responsabilidades familiares?

A discussão sobre o emprego doméstico, hoje acalorada pela entrada em vigor da nova regra da igualdade, é, na verdade, parte de um balaio de temas complexos. Neste balaio incluo o velho tema feminista da divisão desigual do trabalho doméstico no seio da família. Pense-se no quanto é esquisito o hábito de, em regra, tocar à mulher o encargo de selecionar, tratar e assinar a CTPS da empregada doméstica? Eis uma história que já começa mal: a figura masculina do lar fica de plano dispensada de todo e qualquer envolvimento com os temas da cozinha e da área de serviço. Exagero de meu olhar feminista? Talvez.   

O  fato é que o novo patamar jurídico das domésticas tende a desmontar costumes seculares – o nosso jeitinho brasileiro de levar e contornar os problemas do lar com o auxílio da chamada “secretária”. Não adianta mais escapar pelo atalho da amizade entre patroas e empregadas  – relação que, não raro, acaba em lágrimas na Justiça do Trabalho. A pior patroa é a que oferece mimos em troca dos direitos trabalhistas. O tempo de tais desmandos travestidos de generosidade acabou. Todo profissionalismo agora é pouco.

Alguns temas já deviam estar sendo debatidos em concomitância com a aprovação da PEC das domésticas. Por exemplo, a necessidade de redução da jornada de trabalho, de modo a que trabalhadoras e trabalhadores, inclusive domésticos, possam dedicar mais tempo à convivência familiar. Outro ponto relevante é o descompasso entre a jornada de trabalho de mães e pais e a jornada escolar dos filhos. A precariedade dos meios de transporte que alonga o tempo de afastamento de pais e mães do lar, a ausência de creches públicas e demais mecanismos de apoio às famílias são outros temas que passam a exigir maior atenção da parte de quem tem o poder de implementá-los e de quem os deve exigir.  

Por outro lado, é fundamental entender e debater as especificidades do emprego doméstico, pois a nova regra da igualdade não transforma casas de família em empresas. Particularmente no que toca às babás e cuidadoras de idosos, há questões mais sutis envolvidas na contratação e na prestação do trabalho, exigindo-se pactos mais bem pensados e detalhados.  

O contrato de emprego doméstico deve ser anotado na carteira de trabalho, como manda a lei desde 1972. Mas os acertos quanto às especificidades da prestação do trabalho – jornada de trabalho e demais condições -  agora devem ser fixados em contrato por escrito. Mas o contrato não pode contrariar a lei. É, pois, necessário que empregadores e empregadoras saibam bem como proceder, até para tentar evitar futuros problemas na Justiça do Trabalho.

A equiparação dos direitos torna a relação de emprego das domésticas mais onerosa, sobretudo se resulta em conflito judicial. Não se trata de ter que criar um departamento pessoal no lar. Mas necessário será observar os mesmos cuidados mantidos pelas empresas quanto à contratação e fixação das condições de trabalho, quanto à supervisão da execução do trabalho, quanto à dispensa, tudo de acordo com os termos do contrato e na forma da lei. 

Assim, sem que a lista abaixo se exaura, os seguintes movimentos passam a ser importantes:

1) É chegado o tempo de rever antigos hábitos de informalidade. Os novos direitos elevam os custos rescisórios, com maior sobrecarga financeira em caso de sentença condenatória da Justiça do Trabalho. 

2) A cordialidade recíproca deve ser cultivada de parte a parte, mas sem prejuízo do  profissionalismo que deve pautar a relação de trabalho doméstico, hoje sob a égide da igualdade.

3) É necessário formalizar contratos de trabalho por escrito para fixar as condições de execução, jornada, remuneração, etc, moldando-se, assim, a nova regra da igualdade às especificidades de cada caso.  Maior atenção quanto aos contratos de babás e cuidadoras de idosos, sobretudo no que diz respeito à jornada que passa a ser limitada a 44 horas semanais.

4) Em caso de não ser possível arcar com os custos da contratação de empregada ou mesmo de diarista (sem vínculo de emprego), deve ser estabelecido um novo pacto de divisão de trabalho entre os familiares, de modo que as mulheres não saiam ainda mais prejudicadas pela sobrecarga da dupla jornada de trabalho. É tempo de acabar com a mania de limpeza. 

5) Cumpre exigir do Poder Público e das Casas Legislativas a implementação de medidas de apoio às famílias, de modo que o exercício profissional passe a ser garantido sem prejuízo das responsabilidades familiares.

domingo, 10 de março de 2013

GRAFITEIRAS CONTRA A VIOLÊNCIA


O nome de registro da moça é Panmela. O nome de artista, feminista e dona de seu nariz é Anarkia. Não sei porque, li “Anárkia”, assim, com a sílaba tônica antecipada. Sinto mais ritmo nesta pronúncia. Nada eu sabia da arte de Panmela  nem da ONG que dirige – “Rede Nami”, mina ao contrário, na linguagem de grafiteiras e grafiteiros. A instituição tem por objetivo divulgar os direitos das mulheres, com ênfase na luta contra a violência de que Panmela foi vítima aos vinte anos de idade. Hoje, com trinta e um, ela já tem seu trabalho reconhecido internacionalmente. Seus painéis em grafite estão espalhados pela cidade do Rio de Janeiro, como informa O Globo de 10/03/13. Recentemente, Panmela mudou-se da Penha, bairro onde nasceu, para o Rio Comprido para ficar mais perto do centro da cidade e por lá continuar pintando suas personagens, como a “Liberté”, uma mulher que está sempre acompanhada de um águia, símbolo da liberdade. “Percebi que podia me expressar pelo grafite. Foi aí que virei uma feminista e percebi coisas que jamais veria”, declara Anarkia ao citado jornal.

É pela arte com o grafite e não pelo discurso que Panmela toca a consciência das mulheres nas comunidades onde atua. Isto me faz pensar nas manifestações feministas dos anos 80. Nossa linguagem era predominantemente a do discurso.  Mas nele não ficou aprisionada. Com o spray usado pelas grafiteiras, feministas picharam os muros da cidade com os slogans mais significativos do movimento  -   “nosso corpo nos pertence”, “quem ama não mata”. Assim, foi lançada a campanha contra a violência doméstica a partir da onda de  assassinatos de mulheres, sendo então emblemático o caso de Angela Diniz.

A bem da verdade, a abordagem do tema da violência contra as mulheres ganhou curso depois da ruptura da hegemonia do Centro da Mulher Brasileira-CMB criado em 1975. Muitas de nós que chegamos ao movimento a partir da experiência de militância em partidos de esquerda tivemos dificuldades em acolher de pronto as propostas das feministas autônomas. No limiar dos anos 80, estas se retiraram do CMB e formaram o Coletivo de Mulheres que passou a conduzir a ação contra a violência doméstica.  A essa altura, eu já compreendia mais a fundo a questão feminista. Foi quando desconsiderei o conselho de um companheiro do Partido  – “afaste-se das feministas. Isto é coisa feita para dividir a esquerda e enfraquecer a luta geral, a luta de classes”. O fato é que acabei me afastando da organização partidária. Juntamente com outras advogadas feministas passei a participar do “S.O.S. Violência”, dando respaldo jurídico ao atendimento feito às vítimas da violência pelas feministas nos plantões do S.O.S. Mulher. Foi um caminho sem volta.  

Assim, até 1994, mantive-me diretamente envolvida nas vivências feministas, ainda que minha ação se exercesse principalmente na seara jurídica. Até então, o feminismo era naturalmente um movimento direcionado para as praças, para as ruas – o mesmo palco que hoje acolhe arte silenciosa e revolucionária de Anarkia e suas companheiras grafiteiras. Hoje, como observadora, mantenho-me atenta à trajetória da condição feminina. Ao meu modo, tento contribuir para a causa com minha escrita e assim sigo moldando a construção de minha consciência feminista. Fiquei muito feliz com a descoberta do trabalho de Anarkia. Faço minhas as palavras dela, ao fim da entrevista em O Globo: “ As piores coisas do mundo foram feitas em nome de verdades absolutas. Quero só mostrar que há escolhas. Várias escolhas a fazer.”    

segunda-feira, 4 de março de 2013

AS TAREFAS DOMÉSTICAS E A INVENCIBILIDADE DO MACHISMO



Dados estatísticos recentemente divulgados sobre o mercado de trabalho doméstico indicam uma queda acentuada da oferta de trabalho e a consequente elevação dos salários. Outro fato que poderá alterar o cenário deste mercado será a justa aprovação da emenda constitucional que põe fim à desigualdade de direitos trabalhistas fixada na Carta de 1988. Tais ocorrências  passam a exigir da sociedade, das empresas, governos e legisladores um olhar mais atento para inúmeras questões correlatas, sobretudo o drama vivido pelas mulheres para conciliar o desempenho profissional com as responsabilidades familiares.       

A comemoração do Dia Internacional da Mulher – 2013 é oportuna no sentido de sugerir mais aprofundada reflexão sobre as condições atuais de vida das mulheres brasileiras. Empregadas ou patroas estão de certa forma niveladas por angústias comuns resultantes dos focos de invencibilidade do machismo. A violência doméstica, por exemplo, não recua e atinge a todas as mulheres, independentemente de condição social.  

A nova realidade do mercado de trabalho doméstico nos leva de volta aos anos 1970, quando iniciado o ativismo feminista. Em plena ditadura militar, ousamos levantar bandeiras empunhadas por feministas do chamado “primeiro mundo”. Questões até então impensáveis até mesmo nos círculos das esquerdas brasileiras passaram a ser nossas “palavras de ordem”, a despeito do estranhamento que causávamos numa sociedade ainda presa aos valores conservadores e à educação das mulheres para a submissão.

Assumimos a denúncia da dupla jornada de trabalho. Arriscamos nossa própria integridade física para levar a público os casos de violência doméstica. Criamos no Rio de Janeiro o projeto das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher. Lançamos o lema “nosso corpo nos pertence”. Passamos em revista a legislação, apontando a necessidade de revisão das normas discriminatórias. Atuamos na Assembleia Constituinte com parcial êxito. Conduzimos a luta pela descriminalização do aborto.

Em verdade, propúnhamos uma ampla reeducação da sociedade, visando eliminar a cultura machista. Pleiteávamos políticas públicas de igualdade de tratamento nas relações de família, nas empresas, de modo que a mulher passasse a ser destinatária de plena cidadania. Cogitávamos de uma nova sociedade em que os homens viessem a descer do confortável patamar dos privilégios para compartilhar as responsabilidades na esfera doméstica. Na verdade, queríamos apagar da lembrança lemas repetidos por retrógrados maridos: - mulher, você não está educando bem a sua filha. Por que diabos aqueles pais não se atribuíam responsabilidades por suas filhas, empurrando para as mulheres obrigações, ao mesmo tempo, de serviçais e de educadoras? 

Não havia dúvida de que a nova cultura com que sonhávamos, poderia resultar na redução ou na extinção, a longo prazo, do trabalho doméstico remunerado, sobretudo pela evasão das trabalhadoras para outros setores mais promissores do mercado. É o que ora se sinaliza, sem que a democracia inaugurada nos anos 80 tenha incorporado os novos valores propostos pelo movimento feminista. Passam-se os anos e os pilares do machismo continuam intocáveis. Vivendo em família, os homens, mesmo os mais jovens, ainda não arregaçam as mangas para se meter na cozinha e na ária de serviço. Todo o sistema de suporte doméstico das famílias ainda se apoia direta ou indiretamente nas mulheres.

Se  passa a ser difícil contratar a empregada doméstica, já que os  custos se elevam pela baixa oferta de mão de obra, as mulheres é que serão ainda mais penalizadas ao ter que se ocupar das tarefas do lar, duplicando a sua carga de trabalho na solidão da área de serviço. Estatísticas indicam que entre mulheres e homens profissionalmente ocupados, o tempo semanal consumido com os encargos domésticos é diverso – evidentemente o das mulheres é muito maior.

O fato é que a originária pauta do movimento feminista permanece atual. Sem demérito de outros pontos igualmente importantes, é preciso insistir na mudança de atitude dos homens em relação às mulheres e à família; urge postular a redução da jornada de trabalho para homens e mulheres; é hora de exigir dos governos medidas que garantam o pleno acesso às creches e escolas públicas de boa qualidade em tempo integral; impõe-se, igualmente, a reformulação do sistema de transportes, pois, hoje, além da jornada laboral, perde-se longo tempo no ir e vir do trabalho.  

Nos anos 60, a escritora feminista Carmen da Silva descreveu magistralmente as crueldades do sistema machista. Pois, chegamos ao século XXI e os diagnósticos de Carmen, infelizmente, permanecem atualizados. Bastaria reeditar “A Arte de Ser Mulher” que teríamos um bom retrato de nossa realidade.    

sábado, 19 de janeiro de 2013

O caso das "babás" , puro preconceito


Certos clubes da elite carioca vêm exigindo o uso do uniforme branco como meio de identificação das “babás” que, por ordens de seus patrões e patroas, acompanham crianças nas atividades recreativas nas dependências de tais instituições. Tal conduta vem ensejando o justo inconformismo das empregadas domésticas e estas já contam com o apoio de muita gente que não vê outra explicação para a medida que não o puro e mais arraigado preconceito de classe.
As explicações dos clubes envolvidos nas denúncias, tal como divulgadas na imprensa, não convencem. Sem dúvida, o acesso a qualquer clube é restrito aos sócios e a seus dependentes. Há também a categoria dos “convidados” que não se aplica ao caso das empregadas domésticas. Elas não ingressam no clube para usufruir das atividades oferecidas, como ocorre com os convidados. Elas estão a serviço, cumprindo ordens de seus respectivos patrões e patroas.
Há clubes que oferecem serviços a não sócios, por exemplo, aulas de hidroginástica. Neste caso, é fornecida uma carteira de identificação a ser exibida na portaria, sem a qual o acesso do aluno regularmente matriculado fica vedado. Simples, não? Por que não usar este mesmo critério para o acesso das empregadas domésticas dos sócios e das sócias, já que somente entram nos clubes em razão do trabalho que a estes prestam?  
As “babás”, sem dúvida, devem ser identificadas e o bom senso manda que a estas seja conferida uma carteira de identificação ou documento semelhante no qual conste o seu nome, seu número de identidade, o nome do sócio ou da sócia que a credencia a acompanhar crianças, especificando-se que o faz na condição de empregada doméstica.  
Do ponto de vista da segurança das crianças o uniforme nada garante. Quantos bebês já não foram sequestrados em maternidades, valendo-se a sequestradora do uniforme de enfermeira?    
Só mesmo o mais arraigado preconceito de classe pode explicar a exigência do uso do uniforme branco como meio de identificação das empregadas. Na verdade, o que se pretende com a medida é distinguir pelo traje as patroas das  empregadas, como até bem pouco tempo, exigia-se que empregadas domésticas passassem restritamente pelas áreas de serviço dos prédios. Puro exercício de discriminação.
O caso das “babás”já vem até ocupando o Ministério Público, quando a solução da identificação documental não poderia ser mais evidente!
Tento sempre imaginar o Rio de Janeiro como uma cidade mais propensa à eliminação dos preconceitos. Independentemente de cor e condição social, compartilhamos as areias de nossas belas praias, a própria geografia social da cidade se construiu sob o primado da diversidade. Mas a elite – sempre a elite – insiste em impor tratamentos diferenciados, contrariando, assim, a índole democrática do temperamento carioca. O uso do uniforme de qualquer cor, ainda que contratado entre patroas e empregadas, não deve ser tomado como forma de diferenciação para efeitos externos, como, no caso, a identificação para acesso às dependências dos clubes.  
Fique claro que a conduta dos clubes traduz o pensamento de seus sócios, notadamente de suas sócias, pois bem se sabe que os homens são poupados nas tratativas com empregadas domésticas. Aguardemos, pois, uma solução de bom senso para o caso. Quem sabe, uma sócia-patroa mais descolada, mais sensível à modernidade possa sugerir a velha carteira como meio de identificação?