quarta-feira, 15 de junho de 2011

Grupos de reflexão

Em 1975, realizou-se no Rio de Janeiro o Seminário patrocinado pela ONU em razão do Ano Internacional da Mulher. Este evento foi o ponto de partida do novo movimento feminista carioca. Muitas das mulheres que participaram do seminário passaram a se reunir, no esteio da afinidade e de antigas amizades  em pequenos grupos, chamados grupos de reflexão. Vejo agora menção aos "grupos de elevação da consciência" no livro "Tristes, loucas e más", de Lisa Appignanesi.  Na página 378, Lisa comenta a experiência:

"Em seu livro inicial, Women's Estate (1971), Juliet Mitchell observou que o primeiro passo do caminho que conduzia a mulher que se queixava individualmente rumo à criação de um movimento político de mulheres era o grupo de elevação da consciência. Foi através de reuniões de mulheres que compartilhavam a "frustração inespecífica de suas próprias vidas privadas" que o problema pessoal - aborto, vida sexual miserável, aparência do corpo feminino - tornou-se político. "O processo de transformar medos ocultos e individuais de mulheres em uma consciência compartilhada de seu significado como problemas sociais, a liberação da raiva, da ansiedade, a luta para proclamar o sofrimento e transformá-lo no político - esse processo é a elevação da consciência."

"O pessoal é político" foi um dos principais slogans dos movimentos sociais dos anos 70, inclusive do movimento feminista. O lema vale para os nossos dias.

Eu fiz parte de um grupo de reflexão que me trouxe interessantes percepções. Questões e questionamentos que pareciam fantasmas só meus habitavam também o quarto escuro do coração de minhas amigas de grupo. Identificar isso e conversar sobre isso causa enorme alívio. Sim, é possível juntar-se às amigas para algo mais que os papos fúteis sobre as trivialidades do lar. A confiança é o requisito fundamental. Contar com a discreção das participantes do grupo, ou seja, contar coma solidariedade das participantes é fundamental.

O grupo de reflexão ou de elevação da consciência, como se queira chamar, pode abrir um caminho para o entendiemento das questões pessoais. Nada que substitua processos mais profundos, como as terapias orientadas por profissonais. Mas só afastar o sentimento de isolamento e perceber que não se está ficando louca já é um bom começo.






Quem disse que tais questões estejam superadas?  

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Agnès Varda e seu cinema de arte *


“Le Bonheur”

Às vezes penso que a verdade está no avesso. Que, por exemplo, a vida é que me tem com poderes de senhoria, não eu a ela. Deu-me um corpo para me usufruir, tirar a sesta ou se esparramar, espaçosa. Deu-me também um nome para não me confundir com o lote habitado pela vizinha do lado. Exigiu-me identificação civil, carteira com retrato e tudo, só para fazer de conta que eu seja senhora de mim, quando é contrário.
O preâmbulo é para explicar que só pode ser manobra da vida essa de não mais ir ao cinema. Não tenho ido. Perdi o hábito. E agora? Como escolher um filme e sobre ele redigir uma crônica - exigência da oficina literária onde treino para ser escritora? Uma crônica pede interação com o fato em seu frescor de presente. Olhei o jornal, olhei minha agenda e não rolou nem vontade nem tempo de ver às pressas algum filme dos que estão em cartaz. Insisto - a culpa é da vida que me apontou o caminho das montanhas, onde ergui o meu “Walhall” wagneriano e lá, entre as nuvens, me escondo nos fins de semana antes destinados a me por em dia com as novas da 7ª arte, com os amigos, festas. Era assim. Não é mais.  C’ est la vie!
A tarefa me exigia uma decisão. Ia alta a madrugada, quando fui salva por solução óbvia: trazer ao presente um filme antigo que tenha me mobilizado. Pronto, lembrei: “Le Bonheur”, 1965, de Agnès Varda, nascida em Bruxelas em 1928, radicada na França. No Brasil, o filme foi traduzido para “As duas faces da felicidade” e entrou em cartaz nos idos dos meus vinte e dois anos. Eu me despedia do tempo de armar vestidos de domingo com anágua branca engomada e bem passada.
Como diz o nome, o filme aborda um tema universal: a felicidade. Talvez por isto não envelheça. Como foi bom encontrá-lo vivo em DVD na Livraria da Travessa e revê-lo com meu olhar de hoje. Como foi bom, há quarenta e quatro anos atrás, sair da sessão de meia-noite do cinema Paissandú e ver o dia amanhecer nas cercanias do Largo do Machado, em acalorada discussão, na tentativa de desvendar os mistérios do pensamento de Varda. Nota - na época do cinema de arte era assim: a reunião depois da sessão à mesa de um bar era tão importante quanto o filme. Nem sei como o dinheiro dava para tanto. Éramos todos estudantes. Muitos vinham de longe para a Zona Sul. Estar em dia com os filmes era uma espécie de atividade quase curricular. Os temas iam das sessões para as salas de aula, onde a discussão pegava fogo com a participação de professores, uma minoria de cuca mais aberta. Nos tempos da universidade não pisei em boates. A grande diversão do meu grupo era mesmo a cultura.     
Le Bonheur” trata da vida amorosa de um jovem casal de classe média francesa. O marido, François, trabalha como carpinteiro na oficina do tio. Sua mulher, Thérèse, é costureira. A presença das crianças pequenas (Gisou e Pierrot) no desenvolvimento do roteiro valoriza o contexto familiar focalizado pela sagacidade da cineasta.
Todos são saudáveis, lindos e naturalmente amorosos. Não há sinal de desentendimentos entre o casal. Quel Bonheur! A vida flui com a graça sugerida pelo girassol que tremula na apresentação do filme ao som de Mozart. A escolha de ter como atores uma família de verdade - Jean Claude Drouot (Francois), sua mulher Claire Drouot (Thérèse) e seu filhos, Sandrine e Olivier Drouot – sublinha a força da trama. Parece que Varda quis caprichar no requinte estético e numa interpretação mais natural possível justamente para conferir veracidade à felicidade exposta como pintura, como obra de arte. Tudo começa e termina num passeio ao campo em suas cores em tons Monet.  A ação é pontuada por duas lindas peças de Mozart: o Adágio e Fuga para Cordas em Dó Menor, K. 546 e o Quinteto para Clarineta e Cordas, K. 581. A música pode ser vista como um personagem que, ao mesmo tempo, narra e arremata a ação.   
Com seu já experiente olhar de fotógrafa, Agnès Varda cria uma estética impecavelmente harmônica, como convém à definição da leveza dos personagens e da vida que levam. Quase todas as tomadas do filme são adornadas de flores do campo. Mesmo nas cenas internas, lá estão elas num vaso ou mesmo no bouquet que Thérèse traz para a tia na volta do passeio de domingo.   
Tal décor em que a língua francesa também entra como doce melodia pode, sim, sugerir que a felicidade é que dá sentido à beleza lá fora, não o contrário. A felicidade pode estar nos pequenos gestos do dia. Zoom em Thérèse a passar a roupa dos pequenos. Uma felicidade aparentemente inabalável, a brotar como a delicadeza das margaridas do campo, é o que parece unir o casal. Tudo flui no compasso da deliciosa conversa entre clarineta e violino do Quinteto.
François ama Thérèse e, no êxtase de amá-la, se apaixona por Emilie, a moça do serviço postal, não menos suave e linda. A felicidade se adiciona, ele diz, em sincera conversa com Emilie. Nada se modificará quanto à Thérèse e os filhos. Emilie parece aceitar a condição. No baile da comunidade, François dança com as duas na brincadeira de trocar casais. Delicado questionamento de Agnès Varda quanto à moral monogâmica.
Thérèse confecciona um vestido de noiva. Veste-a no dia do casório e a família segue a pé até a Igreja. As paradinhas do grupo para as fotos tornam a situação ridícula. Outro aspecto a ser considerado como uma crítica de Varda à instituição do casamento. Não seria a causa de uma anemia da felicidade dos que se unem em nome do amor?    
 Era domingo e François volta ao campo com a família. Thérèse usa um vestido suavemente estampado de azul. Sob a saia, uma anágua em camadas de filó nos tons do girassol lá do começo do filme. Thérèse ajeita as crianças para sono da tarde numa tenda improvisada com um cortinado branco sobre galhos de pequenos arbustos. Diz a François que nos últimos dias vem notando que ele parece estar mais feliz do que antes. Do jeito mais gentil que se possa imaginar, François conta de seu relacionamento com Emilie. Thérèse quase demonstra tristeza, mas se comove com a sinceridade de François, diz que aceita para que assim seja, se é para vê-lo mais feliz. Eles se amam ardorosamente. Corte. Câmera nas crianças acabando de acordar. François desperta e Thérèse não está ao seu lado.  François chama por Thérèse. Com as crianças ao colo, acelera o passo pelo parque, perguntando se fora vista uma moça de vestido azul.  De repente, ao longe uma confusão. “Um moça foi tirada do lago. Parece que está morta”, diz um velho preparado para pescar. Um flash bach sugere a hipótese de Thérèse a pedir socorro ao se afogar. Isto se passa na mente de François? Ou será uma resposta sugerida pela autora? Não fica claro o que se passara com Thérèse.
Passam-se os dias. François e Emilie se reencontram. Numa cena seguinte, Emilie pega as crianças na escola. Emilie passa roupas dos pequenos, ao som da clarineta. A família vai ao passeio no parque. A imagem se esfumaça como na primeira cena de passeio em que Thérèse ocupa o lugar que agora é de Emilie. A orquestração das cordas intensifica a Fuga de Mozart. De certo modo, o filme termina como começa e a fuga, em seu movimento em espiral, reforça a perspectiva de infinita continuidade.
Thérèse teria aceitado a relação de François com Emilie e morre de acidente, coisa do destino? Thérèse se suicida por não suportar a situação ou para liberar seu amado para a felicidade que não saberia compartilhar? A trajetória amorosa de François representaria uma discreta crítica da autora à cultura de harém que povoa a mente de todos os homens? A felicidade de verdade não comporta tanta liberdade de amar?
A paisagem impressionista do filme não responde a tais indagações. A cineasta parece deixar a obra em aberto. Minha visão sobre a felicidade e o amor conjugal também carece de nitidez. Às vezes penso que a verdadeira felicidade pode estar nos gestos repetitivos do cotidiano. Às vezes penso que é o avesso.  

* crônica apresentada à oficina literária Terapia da Palavra