quinta-feira, 19 de abril de 2012

Desigualdade familiar e a infelicidade das mulheres


Pesquisa coordenada pelo Prof. Marcelo Neri, da FGV, sobre o grau de felicidade das brasileiras merece comentário a partir de um olhar feminista: consta que as solteiras são mais felizes que as casadas, ao passo que as separadas e divorciadas declaram-se mais infelizes que as primeiras. A infelicidade maior das casadas em relação às solteiras é fácil de entender. Seja doutorada ou ocupante de elevado cargo, uma vez casada e mãe, a mulher estará às voltas com a cultura da desigualdade familiar. Mesmo que a renda permita a contratação de empregadas domésticas, atribuir-se-á à esposa a função de lidar indiretamente com os afazeres domésticos, pois assim reza a tábua dos costumes dominantes. Nas camadas de mais baixa renda, a situação poderá ser pior. Os afazeres domésticos serão, em regra, diretamente executados pelas mulheres. O mundo ocidental se estarrece com a ocultação das muçulmanas em suas burcas, mas não percebe que a desigualdade familiar é um tipo de burca imposto às mulheres nas experiências do casamento, pelo ranço que este arrasta através dos tempos.
No tempo do Código Civil de 1916, casar era perder cidadania. Até 1962 a mulher casada não podia comprar a crédito. A Constituição de 1988 abriu o caminho para a igualdade jurídica. Mas só em 2002, o novo Código Civil pôs fim à chefia do homem na sociedade conjugal. Sim, temos novas leis, mas a cultura machista não abre mão de empurrar a mulher para o solitário reinado do lar, tão bem analisado pela escritora Carmen da Silva.  
Segundo a pesquisa, as separadas e divorciadas são mais infelizes que as demais.  Entretanto, o fim do casamento, em si, não explica tal infelicidade suprema. Uma mulher que tem as rédeas de seu destino, em tese, não será mais infeliz do que as outras só por ter se separado do marido. Não é novidade que o amor acaba e, dependendo da identidade que se tenha construído, não será tão doloroso sacudir a poeira e sair em busca de outras alegrias.  Não se trata de simplificar, ousando explicar estados d’alma. Mas desconfio de que a suposta infelicidade maior das separadas esteja relacionada com o balaio de frustrações colhidas durante a união conjugal, de fato ou de direito. Imagine-se uma mulher idosa que se separa e se depara com o tempo perdido quanto ao dever de cuidar de si. E o que dizer da jovem separada que passa a responder solitariamente pelas responsabilidades familiares, enquanto o ex-marido, matreiramente, volta à condição psicológica de menino de treze anos? Dizem que o Brasil emerge para a modernidade. Mas não parece que assim seja em relação às mulheres. Velhos preconceitos, de um modo ou de outro, ecoam em nossas vidas, ocupando o vazio deixado pela ausência de ações sociais pró-equidade de gênero. É uma pena o Brasil resistir a ratificar a Convenção 156, da OIT, que trata de políticas públicas voltadas a garantir a igualdade de oportunidades para trabalhadores e trabalhadoras, sem prejuízo das responsabilidades familiares.

Para eliminar o sexismo na linguagem


A Presidenta Dilma sancionou lei que determina às instituições públicas e privadas de ensino fazer constar dos diplomas a indicação do título flexionado no feminino, no caso das formandas. Acadêmicos e professores de português insurgem-se contra a lei, vide matéria em O Globo de 14/04/2012. Enviei mensagem ao Ancelmo Gois, questionando a neutralidade da forma masculina, lembrando que no início do século XX, o direito à inscrição como eleitoras era negado às brasileiras, sob o fundamento de que, na lei, a palavra “todos” (os brasileiros, os eleitores), no masculino, não incluía as mulheres. Logo, a história não confirma a neutralidade da regra. O Ancelmo publicou nota no blog da Coluna e alguns leitores dispararam comentários tragicômicos. O José de Almeida aconselha-me arranjar trabalho. Olha, moço, mesmo aposentada, não deixo de me ocupar, viu? Tenho, inclusive, publicado artigos em dois blogs, um sobre feminismo e outro sobre ópera. O Rodolfo Dias escreveu que “feministas nada mais são do que dementes invejosas”. Pegou pesado! Suponho que tenha empregado “dementes” em sentido figurado por considerar as feministas desmioladas, lunáticas, algo assim. Admito que sejamos, sim, sonhadoras: acreditamos ser possível eliminar os preconceitos machistas tão vivos em nossos costumes. Em contrapartida, o Luiz Antonio de Souza lembrou fato importante: “Ancelmo, procede o que escreveu a juíza do trabalho, pois na Academia Brasileira de Letras também o ingresso das mulheres foi adiado pela forma do estatuto - "Só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros" - cuja interpretação excluia as mulheres...”. Em verdade, situa-se na ABL o maior foco de resistência à discussão sobre mudança das regras que permitam a adequação da linguagem à igualdade de cidadania entre homens e mulheres. Por sorte, a língua portuguesa já é mais inclusiva. Aqui temos, em regra, a flexão de gênero. Exemplo: professor/professora; escritor/escritora. Na língua francesa, ao contrário, predomina a adoção do masculino como forma (supostamente) neutra. Usa-se professeur, écrivain, no masculino, para nomear a professora, a escritora.
Se no Brasil o tema da linguagem inclusiva de gênero é visto como coisa pitoresca, em vários outros países avanços já foram consagrados. A escritora Benoîte Groult, em seu livro “Minha Fuga” (tradução de Mario Pinheiro, Rio de Janeiro, Record, 2011), relata a batalha travada na França contra o conservadorismo de linguistas e acadêmicos, observando que “a recusa do feminino faz parte de uma estratégia de conjunto, mais ou menos consciente, para retardar essa onda subterrânea que é a chegada das mulheres ao poder”. “A anomalia da linguagem reflete uma anomalia na sociedade. A linguagem forja a identidade daqueles ou daquelas que a falam, quer essa identidade seja nacional, cultural ou sexual”. Benoîte conta que em 1990, “o Conselho da Europa publicava circular sobre a eliminação do sexismo na linguagem, recomendando aos Estados membros a adaptarem o vocabulário à autonomia dos dois sexos, baseando-se no princípio de que as atividades de um ou de outro sejam visíveis da mesma maneira.” E conclui: “não se pode suspeitar que o Conselho da Europa seja um antro de incendiárias”.
Como se vê, haja paciência. É muito difícil desconstruir dogmas, inclusive os da gramática. Mas a inteligência há de superar a intolerância. A Presidenta Dilma está em sintonia com o movimento mundial pela eliminação do sexismo na linguagem.

quinta-feira, 29 de março de 2012

O difícil caminho da igualdade salarial entre homens e mulheres


Tramita no Congresso o Projeto de Lei nº 6.393/2009, de iniciativa do Deputado Federal Marçal Filho (PMDB/MS) que acrescenta parágrafo ao artigo 401, da CLT, para estabelecer “multa” a ser paga pelo empregador à trabalhadora, caso considere o “sexo, a idade, a cor ou situação familiar” como fator de fixação de salário inferior ao dos empregados.
O PL padece de imprecisões, além de não estabelecer os critérios pelos quais se possa apurar e enquadrar determinada situação de pagamento inferior de salário à mulher na variável tipificada como conduta discriminatória patronal (inciso III, do artigo 373-A, da CLT) que dá origem à multa proposta.
Art. 373-A. Ressalvadas as disposições legais destinadas a corrigir as distorções que afetam o acesso da mulher ao mercado de trabalho e certas especificidades estabelecidas nos acordos trabalhistas, é vedado: (grifei)
III – considerar o sexo, a idade, a cor ou situação familiar como variável determinante para fins de remuneração, formação profissional e oportunidades de ascensão profissional;
Se a intenção do legislador é conferir uma reparação à trabalhadora pela quebra da isonomia salarial por motivo de discriminação em razão de sexo, idade, cor ou situação familiar, a regra deveria ser acrescentada ao artigo 373-A, da CLT, acima transcrito, e não ao artigo 401, pois este trata da penalidade administrativa a ser aplicada pela infração de qualquer dispositivo integrante do Capítulo III da CLT, concernente às normas de proteção ao trabalho da mulher. Multas administrativas são aquelas aplicadas e cobradas às empresas pelas Delegacias Regionais do Trabalho em favor do Estado. Eis a confusão em que incorre a iniciativa parlamentar, ao propor a inserção do dispositivo no artigo 401.
Mas o principal equívoco do mencionado projeto de lei não é de ordem da técnica legislativa - reside no fato de que não estabelece critérios por meio dos quais se possa avaliar determinada situação de desigualdade, para enquadrá-la ou não na hipótese prevista no inciso III, do artigo 373-A, da CLT. Tal como redigida e caso aprovada, a norma poderá dificultar a apreciação dos pedidos que venham a chegar à Justiça do Trabalho, bem como estimular demandas trabalhistas voltadas para se obter a vantagem pecuniária estabelecida, mesmo nos casos em que a diferença salarial não decorra de ato de discriminação praticado pelo empregador.
Inegavelmente, dados estatísticos indicam que as mulheres ganham salários inferiores aos dos homens. Entretanto, não se pode afirmar que toda diferença salarial resulte sempre de condutas discriminatórias praticadas pelo empregador. Existem no mercado de trabalho outras tantas variáveis determinantes que explicam as diferenças à menor quanto aos salários pagos às trabalhadoras.
Isto não equivale a negar como causa da desigualdade salarial o preconceito ainda vivo que define o lar como “o lugar” da mulher, dificultando-se, assim, o seu percurso e crescimento na atividade profissional. Quantas não são as mulheres que, mesmo graduadas e profissionalmente aptas, preferem exerceu funções menos compromissadas, elegendo a vida doméstica como sua prioridade de vida? Há uma evidente cultura de desigualdade familiar a dar origem ao recuo por parte das próprias mulheres quanto a abraçar uma carreira e exercer maiores responsabilidades profissionais. A professora Maria Alice Resende de Carvalho, em recente conversa que tivemos, observou com muita propriedade que, no caso das mulheres, há uma diferença entre trabalhar fora e “fazer carreira”. É verdade. São obstáculos de ordem subjetiva alimentados pelas dificuldades objetivas encontradas pelas mulheres quanto à perspectiva de traçar para si um projeto de crescimento profissional.
Há, por outro lado, uma cultura empresarial de feitio masculino nas quais nem todas as mulheres se enquadram e nem devem se enquadrar! Por exemplo, o ritmo frenético de trabalho, hoje considerado como parâmetro de produtividade e excelência no desempenho profissional. Refiro-me a um estilo de vida empresarial nocivo a todos que não deixa de ser instrumentalizado pelos homens para marcar seu lugar no mercado e desencorajar as mulheres a seguir carreira, aprofundando-se em foro íntimo o dilema que coloca em pontos opostos a vida privada e a vida profissional, algo que raramente acontece com os homens.
Diante da seriedade com que devem ser tratados os temas relacionados aos direitos trabalhistas das mulheres, penso que as proposições de incentivo são mais eficazes do que as penalidades pecuniárias, tais como a prevista no PL aqui comentado. Exemplo disto é a lei que cria Programa Empresa Cidadã, estabelecendo dedução fiscal condicionada à prorrogação da licença-maternidade por mais 60 dias, além dos 120 previstos na CF/88. Fique claro que esta prorrogação não tem natureza de um direito trabalhista - trata-se de um benefício fiscal em favor do empregador. Mas, a medida não deixa de ser positiva, em razão da dificuldade política de se aprovar a ampliação da licença-maternidade como um direito das trabalhadoras. Outras ações pró-equidade de gênero e de fortalecimento da cultura de igualdade no mercado de trabalho seriam bem-vindas e poderiam ser fixadas em lei, para mudar a mentalidade empresarial. A Convenção nº 156, da Organização Internacional do Trabalho, OIT, já aponta o caminho da nova cultura de compartilhamento das responsabilidades profissionais e familiares. Pena é que o Brasil ainda não a tenha ratificado. 
No propósito de fomentar ações positivas, em 2010, a Secretaria de Política das Mulheres tomou a iniciativa de levar ao Congresso proposta de lei que estabelece normas de suporte à prática da igualdade, visando, em resumo: coibir discriminações; garantir o equilíbrio entre as responsabilidades familiares e profissionais de trabalhadoras e trabalhadores; prevenir e coibir os assédios no âmbito da empresa; criar as Comissões Internas de Promoção da Igualdade - CIPI, inspiradas nas Comissões Internas de Prevenção de Acidentes – CIPA. Não há notícias de que tais proposições tenham sido integralmente encampadas e de que venham a ser aprovadas pelo Congresso. 
É fato que o crescimento profissional de homens e mulheres não ocorre no mesmo compasso. E isto se reflete no valor do salário. Mas nem toda diferença salarial entre homens e mulheres, ou mesmo entre mulheres, será resultante de conduta patronal discriminatória. Para punir o empregador com sanção pecuniária é preciso apurar e tipificar as causas da diferença, o que somente pode ser feito de modo justo através de critérios objetivos a serem estipulados em lei e isto não foi contemplado na redação do referido projeto de lei. Assim fez o legislador com a CLT, em 1943. Estabeleceu requisitos para a equiparação salarial prevista no art. 461, definindo o que seja “trabalho de igual valor”: “o que for feito com igual produtividade e com a mesma perfeição técnica, entre pessoas cuja diferença de tempo de serviço não for superior a dois anos.” De tal modo, a equiparação pode ser postulada na Justiça do Trabalho, mas só será deferida se caracterizado o “trabalho de igual valor”, de acordo com os parâmetros legais.
 Mais importante que a fixação de multa de duvidosa eficácia é garantir a igualdade de tratamento, ou seja, garantir que mulheres e homens tenham mesmas chances de acesso e permanência no mercado de trabalho, de treinamento, de qualificação e ascensão profissional. Isto não se alcança com a aplicação de penalidades. É necessário criar medidas que permitam fortalecer a cultura da igualdade, infundir o sentido de compartilhamento das responsabilidades familiares e profissionais entre homens e mulheres, bem como para impedir e desmascarar os sutis mecanismos às vezes utilizados pelos empregadores no sentido de facilitar o crescimento profissional dos homens e barrar o das mulheres. Sem dúvida, há um espaço vazio a ser ocupado por uma lei que venha cuidar da efetividade das garantias da igualdade já asseguradas na ordem vigente, como as que já existem, por exemplo, na Espanha, no Uruguai, no Peru, em Costa Rica.
  Por fim, é bom lembrar que as trabalhadoras podem recorrer à Justiça do Trabalho com pedido de rescisão indireta do contrato (a justa causa do patrão) em caso de violação da Constituição e do art. 373-A, da CLT, bem como, postular indenização por danos decorrentes da violação aos princípios e normas que garantem a igualdade no mercado do trabalho. 
Rio, março de 2012

sexta-feira, 23 de março de 2012

Ópera: DerRosenkavalier: o amor numa visão feminista "O...

Ópera:
DerRosenkavalier:
o amor numa visão feminista "O...
: Der Rosenkavalier:  o amor numa visão feminista "O Cavaleiro da Rosa" . Cartaz da produção de 2005 da Opera de Los Angeles ...

Carta ao Prefeito do Rio de Janeiro - homenagem à Mariska Ribeiro


Excelentíssimo Sr. Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro
Dr. Eduardo Paes
Tomei conhecimento de que um novo hospital municipal será em breve inaugurado e de que feita a sugestão de que o órgão venha a se chamar “Hospital Mariska Ribeiro”. Junto-me, pois, às amigas e companheiras Hildete Pereira de Mello Jacqueline Pitanguy, Leila Linhares, e demais feministas, autoras da proposta, para, igualmente, expressar minha modesta opinião quanto ao acerto da proposta.
Conheci Mariska Ribeiro em reunião do movimento feminista, em 1975, e, desde então, juntas, participamos de diversas ações pró-igualdade e plena cidadania das mulheres. Mais que companheiras do movimento, tornamo-nos amigas e amigas permanecemos até o dia da morte dela.
Homenagear Mariska não é só reconhecer a importância de sua contribuição ao movimento de mulheres, com ênfase nas questões da saúde e dos direitos reprodutivos. Mariska foi também uma vibrante fomentadora de cultura e, com seu olhar inovador, atuou nesta área em projetos da Secretaria de Governo do Estado do Rio de Janeiro.
Na verdade, não conheço mulher mais carioca do que Mariska. Exímia conhecedora e amante da música popular, Mariska pesquisou a imagem da mulher nas canções brasileiras e publicou um livro delicioso – “Mulher Brasileira, uma história cantada” (edição do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher/Ministério da Justiça). Este trabalho despertou nela o desejo de escrever roteiros para shows de MPB - o primeiro foi, então, baseado no referido livro. Produziu outros, inclusive, sobre as músicas que cantam a cidade do Rio de Janeiro.
Movida por genuína consciência feminista, Mariska nunca esteve alheia à realidade da condição da mulher e a de seu povo, de sua cidade. Soube viver intensamente cada momento da vida, sempre pensando em cidadania no plural, com foco na harmonia da coletividade.
Mais que uma homenagem de praxe da Prefeitura a uma notável cidadã carioca, dar o nome de Mariska Ribeiro a um hospital público de atendimento à mulher é selar o reconhecimento da força construtiva das mulheres desta cidade. É homenagear a luta de cada uma de nós, mulheres, por uma cidade melhor, por uma vida melhor, pelo direito ao atendimento digno e público em todas as áreas, notadamente, nas áreas de saúde e educação.
Por tais razões e outras tantas que eu pudesse expor, Caro Prefeito, voto em Mariska Ribeiro para dar nome ao hospital a ser inaugurado. Aproveito o ensejo para parabenizar vossa iniciativa de criar mais uma unidade de atendimento à saúde, na esperança de que um dia, não mais vejamos na TV aquelas tristes reportagens - gente estirada pelos corredores dos hospitais públicos, os pedros pedreiros (invocando Chico Buarque) e “a mulher de Pedro esperando um filho para esperar também”... “pela sorte, pela morte, pelo Norte...” Aquela “esperança aflita, bendita, infinita” de um dia ser alguém com plenos direitos de cidadania.
Certa de que Vossa Excelência é sensível não só às palavras do poeta, como também ao projeto de um futuro melhor para a cidade do Rio de Janeiro, subscrevo-me cordialmente.   
Comba Marques Porto
carioca, feminista, Juíza do Trabalho aposentada

Observação: esta carta foi enviada em 22/03/2012, e, no mesmo dia, respondida pelo Sr. Prefeito nos seguintes termos: "é claro que ela será homenageada".  Muito bom!!! 

sábado, 10 de março de 2012

Memória de minha atuação feminista na imprensa

De meados de 1986 a abril de 1987, mantive a coluna "PALAVRA DE MULHER" no jornal carioca, "Última Hora", dedicada aos temas do movimento feminista de que eu participava. Por sorte, tenho guardados os recortes das edições diárias,  senão todas, quase todas. Antes que o tempo os desfaça (e já se apresentam em tons fortemente amarelecidos, como brancos lá vão os meus cabelos) resolvo digitalizar tudo e republicar neste blog, relacionando os temas tratados no passado com os atuais abordados em minhas postagens.  

Na última matéria aqui editada sobre a "infelicidade das mulheres", à propósito de nota divulgada em O Globo sobre pesquisa da FGV, abordei o que chamo de "cultura da desigualdade familiar" como causa da infelicidade que, pelos dados da pesquisa, é maior entre as mulheres casadas. Conquanto sejamos  muito críticas com os costumes orientais, por exemplo, o aprisionamento das mulheres em burcas, não nos damos conta de que também estamos igualmente presas a um tipo de burca cultural que nos induz a aceitar como normal a dupla jornada de trabalho e tantos outros padrões da "educação para a submissão" (expressão cunhada pela feminista e educadora italina Elena Gianini Bellotti) a que somos submetidas. No meu artigo vou além da questão familiar e o termino questionando outros comportamentos femininos impostos pelo machismo, tais como a suposta liberdade sexual, a imagem de mulher segundo os padrões da moda e da sociedade de consumo.

Em 1986, certo produtor de filmes pornográficos foi preso em flagrante no Rio por uso de imagens de meninas menores de idade. Seguem trechos da coluna do dia 22 de outubro, sob o título "Corpo à venda":
" o produtor declarou que as meninas que contratava não eram coagidas a serví-lo, que chegavam lá por suas próprias pernas, procurando espaço para ganhar uma graninha e subir na vida como modelos ou atrizes de cinema. A notécia do flagrante revela que meninas de até 10 anos foram filmadas para o cidadão de mais de 50 anos. (....) A declaração do criminoso dá o que pensar. (...) Numa sociedade em que tudo se vende, em que os valores de consumo assumem maior importância na vida das pessoas, tal ocorrência pode não espantar. (...) O exercício da sexualidade tomou estranho rumo. A repressão intensa do sexo fou substituída por uma "liberalidade" perversa que vem condicionando nas mulheres um sentimento de menos valia de seu corpo . (...) Não tenho dúvidas de que o explorador de meninas deve ser severamente punido. No entanto, vejo uma responsabilidade coletiva por crimes dessa natureza. Os filmes pornôs produzidos pelo criminoso eram comprados pelos donos de motéis que, por sua vez, os efereciam aos casais que silenciaram diante do que viram. Todos os beneficiários deste tipo de comércio - muitos deles certamente pais de meninas que estão sujeitas a se envolver com tal negócio - devem refletir à sério, sobre o caso."