quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Duas inglesas em todas nós


Neste ano de 2011, duas inglesas chamaram a atenção do mundo por imagens inteiramente contrapostas de suas respectivas trajetórias de vida. Uma vem da plebe e ascende à realeza em cerimônia de casamento realizada nos requintes e rigores da tradição. Enquanto esta seguia a passos firmes o caminho para o panteon, a outra inglesa descia do topo a passos trôpegos, anunciando o seu desfecho, mesmo que a vida ainda insistisse em brilhar em seus olhos acentuados por tintas fortes inscritas também na pele, irremovíveis camadas de maquiagem.  

Em desfile em carro aberto, era previsto que a noiva desse bye bye ao povo que contribui com seus recursos para o processo de acumulação de nobreza, quer dizer, de riqueza. Mas o braço da moça só poderia se elevar até a exígua e exata altura permitida pelo protocolo real.

O noivo apresenta-se impecavelmente fardado, porte elegante, certa beleza herdada da mãe. Boas chances de não virar sapo. Apesar de um tanto batida, a referência a tal transformação sempre vem a calhar diante das cenas de um casamento. Mesmo que venha de trem ou a pé, no imaginário da noiva, o noivo sempre chega montado em cavalo branco. O mais usual é que, passado um tempo, o cavalo saia da cena, a circunferência do príncipe aumente uns pontos. Grandes chances de que o sonho se desfaça em silêncios, quando não em conflitos.  

E lá veio a noiva com seu buquê. Bela, culta, pontual, segura de seu papel, sorrisos contidos. No tears, que emoção de gente nobre não se expõe em público. Esta inglesa exibe ao mundo a imagem perfeita do modelo ideal de mulher – criatura “divina e graciosa” que preenche todas as expectativas da cultura dominante ao se colocar de modo perfeito no lugar previamente talhado.  

A outra inglesa acessa em minha memória a imagem das meninas transgressoras que fumavam no banheiro da escola, ensaiando movimentos de rock and roll. Esta outra figura não menos esguia e tipicamente londrina projeta-se em 2003 quando ainda não se ouvia falar da prometida ao príncipe. Compositora. Cantora. Voz quente, rascante, desobediente. Alma, estilo e elegância em visceral desalinho. Precisão britânica na torrente de musicalidade, mesmo nos últimos tempos de emissão enrolada pela ação do álcool. Em 2006, chega ao auge da carreira com premiações importantes. Seus hábitos inteiramente contrários aos modos retratados no casamento real despertam incertezas quanto à sua longevidade. Porém, até o último dia, não abalam a qualidade de sua arte. A morte leva desta outra inglesa o que dela restava de materialidade corporal, enquanto sua obra permanece viva na história da música popular internacional.                

Vejo as cenas das duas inglesas como representações de símbolos extremos do papel que, em regra, confere-se à mulher na sociedade. Então, sonho com a possibilidade de construção de identidades femininas não aprisionáveis em modelos. Nem só santa, nem só demônio. É preciso descobrir os caminhos do meio. E tenho a visão de uma mescla de pinturas famosas - épocas, estéticas e conceitos distintos. E nos vejo a despertar a admiração do outro pelo retrato de nossa autêntica individualidade não contida em molduras. Equilíbrios renascentistas e assimetrias cubistas convivendo na mesma imagem de mulher, em sugestão de múltiplos e infinitos traçados.

Há algo em comum entre as duas inglesas? Sim. São mulheres, quer dizer, das quais sempre se espera comportamentos estratificados, o que dificulta a liberdade de existir em plenitude. E há também o gosto pelas alegorias elevadas sobre a cabeça, bem representadas pelos chapéus das convidadas no casamento real e pelo murundu de cabelo que compunha o look da cantora, aquele mesmo que armávamos com auxílio do Bombril para ir aos bailes nos anos 60. Uma espécie de síndrome da coroação ou do pedestal que transborda os arredores de Londres. Rainha do Rádio. Rainha da Bateria. Rainha do Lar. Assim nos querem. Lá no alto. No altar. Sublimes. Deusas. Não é para desconfiar?
                                                       Em 21/09/2011     

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Ministro Mantega, machismo e trabalho doméstico

Matéria divulada no link abaixo, revela como é difícil no Brasil eliminar o pensamento machista, muitas vezes plantado nas mentes de autoridades públicas integrantes de um governo, como o atual, que se propõe a aprimorar o regime democrático. 
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/07/110705_mantega_fazenda_dg.shtml
O Ministro da Fazenda, Guido Mantega, fazendo graça frente ao Ministro britânico sobre as maravilhas do Brasil, comentou que temos uma grande reserva de mão de obra - em 2009 eram 6,7 milhões de pessoas ocupadas nos trabalhos domésticos remunerados. O Ministro assim considera tais pessoas mão de obra de reserva e subutilizada.
 
"Será que o Ministro considera que cuidar de crianças, de idosos e doentes;  limpar, cozinhar, lavar roupa, comprar comida e exercer atividades que permitem que a vida se reproduza nada valem? Se não é possível alugar ou comprar MÃE, seria por afeto que as mulheres prestam estes serviços para a humanidade? Quer dizer que o fato de ser o trabalho doméstico executado pelas mulheres (uma questão da cultura machista e não propriamente inerente à natureza feminina) equivale a considerar que as pessoas que exercem o trabalho doméstico remunerado formam um contingente da força de trabalho subutilizado?", comenta a economista Hildete Pereira. 
Lamentavelmente, as afirmações do Ministro Mantega reforçam o estereotipo da inferioridade da mulher e traduzem o velho machismo escondido na sociedade. No governo da PRESIDENTA DILMA este tipo de comentário não ajuda, ao contrário, atrapalha a construção da igualdade na sociedade.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

PROGRAMA CULTURAL, mulher e cinema

Universo do cinema feminino em cartaz na Caixa Cultural Rio
Documentário dinamarquês, "Det gode liv" será exibido na abertura do Festival, nesta segunda (11)
A Caixa Cultural Rio de Janeiro apresenta, de 11 a 17 de julho, o FEMINA - Festival Internacional de Cinema Feminino 2011, que em sua oitava edição homenageia a cineasta Helena Solberg. O festival é o primeiro evento do gênero no Brasil e foi criado com o objetivo de destacar o trabalho de mulheres no cenário cinematográfico brasileiro e mundial.
Durante a abertura, que ocorre na próxima segunda (11), será exibido o inédito "Det gode liv" (A boa vida/The Good Life), documentário dinamarquês da diretora Eva Mulva. No filme, a cineasta expõe duas mulheres, mãe e filha, que passaram a vida como boas vivants até a fortuna acabar. “Como elas lidarão com a nova e dura realidade?”
Para o público, o festival começa no dia 12 de julho e segue até dia 17 de julho, com ingressos a preços populares (R$2 e R$1). O FEMINA traz grandes atrações em sua programação, como o novo filme da diretora Barbara Kopple - “Gun fight”, documentário sobre o comércio de armas nos EUA; e “Au voleur”,  de Sarah Leonor, produção francesa, último filme de Guillaume Depardieu (filho do Gerard), que faleceu após as filmagens. Os filmes são inéditos no Brasil.
Homenagem - Como todos os anos, o FEMINA presta tributo a uma personalidade feminina do cinema brasileiro. Desta vez a homenageada é a diretora Helena Solberg, que terá seu premiado documentário “Nicarágua hoje”, vencedor do National Emmy Award, exibido no encerramento do festival, no dia 17.
Cinema Feminino - O FEMINA surgiu em 2004 e foi um marco na participação feminina no cinema como primeiro festival de filmes dirigidos por mulheres no Brasil e América Latina. Desde então, acontece anualmente na cidade do Rio de Janeiro, e já realizou mostras especiais em outras cidades fluminense, em Fortaleza (CE), Corumbá (MS), Goiânia (GO) e João Pessoa (PB). O festival 2011 é realizado pelo Instituto de Cultura e Cidadania Feminina e conta com o patrocínio da Caixa, Ministério da Cultura e Secretaria de Cultura do Estado do Rio.
Serviço:
FEMINA – Festival Internacional de Cinema Feminino 2011
Local: Caixa Cultural Rio de Janeiro – Cinemas 1 e 2
Abertura: 11 de julho de 2011
Data: 12 a 17 de julho de 2011
Ingressos: R$2 inteira e R$ 1 meia
Bilheteria: de terça a sábado de 10h às 22h e domingo de 10h às 21h
Classificação: 16

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Grupos de reflexão

Em 1975, realizou-se no Rio de Janeiro o Seminário patrocinado pela ONU em razão do Ano Internacional da Mulher. Este evento foi o ponto de partida do novo movimento feminista carioca. Muitas das mulheres que participaram do seminário passaram a se reunir, no esteio da afinidade e de antigas amizades  em pequenos grupos, chamados grupos de reflexão. Vejo agora menção aos "grupos de elevação da consciência" no livro "Tristes, loucas e más", de Lisa Appignanesi.  Na página 378, Lisa comenta a experiência:

"Em seu livro inicial, Women's Estate (1971), Juliet Mitchell observou que o primeiro passo do caminho que conduzia a mulher que se queixava individualmente rumo à criação de um movimento político de mulheres era o grupo de elevação da consciência. Foi através de reuniões de mulheres que compartilhavam a "frustração inespecífica de suas próprias vidas privadas" que o problema pessoal - aborto, vida sexual miserável, aparência do corpo feminino - tornou-se político. "O processo de transformar medos ocultos e individuais de mulheres em uma consciência compartilhada de seu significado como problemas sociais, a liberação da raiva, da ansiedade, a luta para proclamar o sofrimento e transformá-lo no político - esse processo é a elevação da consciência."

"O pessoal é político" foi um dos principais slogans dos movimentos sociais dos anos 70, inclusive do movimento feminista. O lema vale para os nossos dias.

Eu fiz parte de um grupo de reflexão que me trouxe interessantes percepções. Questões e questionamentos que pareciam fantasmas só meus habitavam também o quarto escuro do coração de minhas amigas de grupo. Identificar isso e conversar sobre isso causa enorme alívio. Sim, é possível juntar-se às amigas para algo mais que os papos fúteis sobre as trivialidades do lar. A confiança é o requisito fundamental. Contar com a discreção das participantes do grupo, ou seja, contar coma solidariedade das participantes é fundamental.

O grupo de reflexão ou de elevação da consciência, como se queira chamar, pode abrir um caminho para o entendiemento das questões pessoais. Nada que substitua processos mais profundos, como as terapias orientadas por profissonais. Mas só afastar o sentimento de isolamento e perceber que não se está ficando louca já é um bom começo.






Quem disse que tais questões estejam superadas?  

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Agnès Varda e seu cinema de arte *


“Le Bonheur”

Às vezes penso que a verdade está no avesso. Que, por exemplo, a vida é que me tem com poderes de senhoria, não eu a ela. Deu-me um corpo para me usufruir, tirar a sesta ou se esparramar, espaçosa. Deu-me também um nome para não me confundir com o lote habitado pela vizinha do lado. Exigiu-me identificação civil, carteira com retrato e tudo, só para fazer de conta que eu seja senhora de mim, quando é contrário.
O preâmbulo é para explicar que só pode ser manobra da vida essa de não mais ir ao cinema. Não tenho ido. Perdi o hábito. E agora? Como escolher um filme e sobre ele redigir uma crônica - exigência da oficina literária onde treino para ser escritora? Uma crônica pede interação com o fato em seu frescor de presente. Olhei o jornal, olhei minha agenda e não rolou nem vontade nem tempo de ver às pressas algum filme dos que estão em cartaz. Insisto - a culpa é da vida que me apontou o caminho das montanhas, onde ergui o meu “Walhall” wagneriano e lá, entre as nuvens, me escondo nos fins de semana antes destinados a me por em dia com as novas da 7ª arte, com os amigos, festas. Era assim. Não é mais.  C’ est la vie!
A tarefa me exigia uma decisão. Ia alta a madrugada, quando fui salva por solução óbvia: trazer ao presente um filme antigo que tenha me mobilizado. Pronto, lembrei: “Le Bonheur”, 1965, de Agnès Varda, nascida em Bruxelas em 1928, radicada na França. No Brasil, o filme foi traduzido para “As duas faces da felicidade” e entrou em cartaz nos idos dos meus vinte e dois anos. Eu me despedia do tempo de armar vestidos de domingo com anágua branca engomada e bem passada.
Como diz o nome, o filme aborda um tema universal: a felicidade. Talvez por isto não envelheça. Como foi bom encontrá-lo vivo em DVD na Livraria da Travessa e revê-lo com meu olhar de hoje. Como foi bom, há quarenta e quatro anos atrás, sair da sessão de meia-noite do cinema Paissandú e ver o dia amanhecer nas cercanias do Largo do Machado, em acalorada discussão, na tentativa de desvendar os mistérios do pensamento de Varda. Nota - na época do cinema de arte era assim: a reunião depois da sessão à mesa de um bar era tão importante quanto o filme. Nem sei como o dinheiro dava para tanto. Éramos todos estudantes. Muitos vinham de longe para a Zona Sul. Estar em dia com os filmes era uma espécie de atividade quase curricular. Os temas iam das sessões para as salas de aula, onde a discussão pegava fogo com a participação de professores, uma minoria de cuca mais aberta. Nos tempos da universidade não pisei em boates. A grande diversão do meu grupo era mesmo a cultura.     
Le Bonheur” trata da vida amorosa de um jovem casal de classe média francesa. O marido, François, trabalha como carpinteiro na oficina do tio. Sua mulher, Thérèse, é costureira. A presença das crianças pequenas (Gisou e Pierrot) no desenvolvimento do roteiro valoriza o contexto familiar focalizado pela sagacidade da cineasta.
Todos são saudáveis, lindos e naturalmente amorosos. Não há sinal de desentendimentos entre o casal. Quel Bonheur! A vida flui com a graça sugerida pelo girassol que tremula na apresentação do filme ao som de Mozart. A escolha de ter como atores uma família de verdade - Jean Claude Drouot (Francois), sua mulher Claire Drouot (Thérèse) e seu filhos, Sandrine e Olivier Drouot – sublinha a força da trama. Parece que Varda quis caprichar no requinte estético e numa interpretação mais natural possível justamente para conferir veracidade à felicidade exposta como pintura, como obra de arte. Tudo começa e termina num passeio ao campo em suas cores em tons Monet.  A ação é pontuada por duas lindas peças de Mozart: o Adágio e Fuga para Cordas em Dó Menor, K. 546 e o Quinteto para Clarineta e Cordas, K. 581. A música pode ser vista como um personagem que, ao mesmo tempo, narra e arremata a ação.   
Com seu já experiente olhar de fotógrafa, Agnès Varda cria uma estética impecavelmente harmônica, como convém à definição da leveza dos personagens e da vida que levam. Quase todas as tomadas do filme são adornadas de flores do campo. Mesmo nas cenas internas, lá estão elas num vaso ou mesmo no bouquet que Thérèse traz para a tia na volta do passeio de domingo.   
Tal décor em que a língua francesa também entra como doce melodia pode, sim, sugerir que a felicidade é que dá sentido à beleza lá fora, não o contrário. A felicidade pode estar nos pequenos gestos do dia. Zoom em Thérèse a passar a roupa dos pequenos. Uma felicidade aparentemente inabalável, a brotar como a delicadeza das margaridas do campo, é o que parece unir o casal. Tudo flui no compasso da deliciosa conversa entre clarineta e violino do Quinteto.
François ama Thérèse e, no êxtase de amá-la, se apaixona por Emilie, a moça do serviço postal, não menos suave e linda. A felicidade se adiciona, ele diz, em sincera conversa com Emilie. Nada se modificará quanto à Thérèse e os filhos. Emilie parece aceitar a condição. No baile da comunidade, François dança com as duas na brincadeira de trocar casais. Delicado questionamento de Agnès Varda quanto à moral monogâmica.
Thérèse confecciona um vestido de noiva. Veste-a no dia do casório e a família segue a pé até a Igreja. As paradinhas do grupo para as fotos tornam a situação ridícula. Outro aspecto a ser considerado como uma crítica de Varda à instituição do casamento. Não seria a causa de uma anemia da felicidade dos que se unem em nome do amor?    
 Era domingo e François volta ao campo com a família. Thérèse usa um vestido suavemente estampado de azul. Sob a saia, uma anágua em camadas de filó nos tons do girassol lá do começo do filme. Thérèse ajeita as crianças para sono da tarde numa tenda improvisada com um cortinado branco sobre galhos de pequenos arbustos. Diz a François que nos últimos dias vem notando que ele parece estar mais feliz do que antes. Do jeito mais gentil que se possa imaginar, François conta de seu relacionamento com Emilie. Thérèse quase demonstra tristeza, mas se comove com a sinceridade de François, diz que aceita para que assim seja, se é para vê-lo mais feliz. Eles se amam ardorosamente. Corte. Câmera nas crianças acabando de acordar. François desperta e Thérèse não está ao seu lado.  François chama por Thérèse. Com as crianças ao colo, acelera o passo pelo parque, perguntando se fora vista uma moça de vestido azul.  De repente, ao longe uma confusão. “Um moça foi tirada do lago. Parece que está morta”, diz um velho preparado para pescar. Um flash bach sugere a hipótese de Thérèse a pedir socorro ao se afogar. Isto se passa na mente de François? Ou será uma resposta sugerida pela autora? Não fica claro o que se passara com Thérèse.
Passam-se os dias. François e Emilie se reencontram. Numa cena seguinte, Emilie pega as crianças na escola. Emilie passa roupas dos pequenos, ao som da clarineta. A família vai ao passeio no parque. A imagem se esfumaça como na primeira cena de passeio em que Thérèse ocupa o lugar que agora é de Emilie. A orquestração das cordas intensifica a Fuga de Mozart. De certo modo, o filme termina como começa e a fuga, em seu movimento em espiral, reforça a perspectiva de infinita continuidade.
Thérèse teria aceitado a relação de François com Emilie e morre de acidente, coisa do destino? Thérèse se suicida por não suportar a situação ou para liberar seu amado para a felicidade que não saberia compartilhar? A trajetória amorosa de François representaria uma discreta crítica da autora à cultura de harém que povoa a mente de todos os homens? A felicidade de verdade não comporta tanta liberdade de amar?
A paisagem impressionista do filme não responde a tais indagações. A cineasta parece deixar a obra em aberto. Minha visão sobre a felicidade e o amor conjugal também carece de nitidez. Às vezes penso que a verdadeira felicidade pode estar nos gestos repetitivos do cotidiano. Às vezes penso que é o avesso.  

* crônica apresentada à oficina literária Terapia da Palavra

domingo, 29 de maio de 2011

Lei Maria da Penha no STF

O Supremo Tribunal Federal recebeu em 2010 uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 4.424), na qual a Vice-Procuradora Geral da República, Dra. Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira e o Procurador Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel dos Santos, como requerentes, pedem que a Corte firme interpretação por meio da qual venha a declarar a inconstitucionalidade da aplicação da Lei 9.099/95, que criou os juizados especiais de pequenas causas cíveis e criminais, aos casos de violência doméstica definidos no artigo 7º, da Lei 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, para que prevaleça o disposto em seu artigo 41, que veda a aplicação da lei dos juizados de pequenas causas aos crimes praticados na seara da violência doméstica e familiar contra a mulher.  
É que, em vista de conflito de entendimento delineado pelo confronto dos previstos nos artigos 12, I e 16 e 41, da mesma Lei Maria da Penha, Cortes judiciais, inclusive o STF, vêm acolhendo entendimento que desconsidera a previsão impeditiva do artigo 41, admitindo, assim, a aplicação na esfera da violência doméstica da lei das pequenas causas criminais (delitos de menor potencial ofensivo), privilegiando-se: a primordial tentativa de conciliação; a exigência de representação formal da ofendida própria dos crimes de ação pública condicionada, ou seja, a ação penal somente pode ser aberta pelo Ministério Público com expressa concordância da ofendida; a possibilidade de cominação de pena alternativa (cesta básica, por exemplo).
De tal modo, nos casos das chamadas “lesões leves” tidas como praticadas no âmbito doméstico contra a mulher, a Justiça vem entregando ao crivo das vítimas o destino do agressor, supondo, provavelmente que das mulheres ofendidas é de se esperar o gesto magnânimo de evitar a sujeição do agressor à ação criminal, em defesa da família, da força de sua tradição, para que os filhos sejam poupados de ver o pai atrás das grades, etc. Isto me faz imediatamente lembrar um samba que diz em sua parte final:
“... a mulher que é mulher
não deixa o lar à toa
a mulher que é mulher
se o homem errar, perdoa...”
                                             (“A Mulher que é Mulher”, de Klecius Caldas e Armando Cavalcanti).
No embalo da melodia carnavalesca, poder-se-ia concluir: se a mulher leva uma bolacha na cara, coisa “leve” cujo inchaço em tons roxos em poucos dias se esvanecerá, para que levar o agressor à ação penal? Seria simples se não fosse sério. Jamais será cômico porque é simplesmente trágico. Quantos não foram os casos de violência doméstica atendidos pelas feministas nos anos 80 em que o bofetão ou o chute na canela foram só o começo de uma conduta ofensiva continuada e potencialmente grave, a culminar, não raro, em assassinato?  
A Lei Maria da Penha entrou em vigor em 2006, resultando de um longo e complexo debate iniciado na Assembléia Nacional Constituinte, em 1987/88. O movimento de mulheres esteve vivamente presente nos embates da Constituinte. Fomos chamadas a dizer sobre a nossa experiência de ouvir as mulheres (e já o fazíamos desde 1975, com a retomada do feminismo em suas novas formulações - um passo à frente em relação às sufragistas, às ações das organizações de mulheres pelos direitos de todos, por exemplo, contra a carestia, que marcaram a primeira metade do século XX). Na nova onda feminista, as velhas práticas de violências domésticas saíram do silêncio e a abordagem deste tema pode ser considerada como a maior contribuição que o movimento tenha dado à sociedade brasileira e à difícil construção de seu caminho para a democracia.    
Nossos estudos sobre os direitos da mulher sob o enfoque dos novos temas feministas, o atendimento nos grupos “SOS-Mulher” nos credenciaram a atuar junto ao Congresso Constituinte. Fomos convidadas ao expor nas comissões temáticas, fomos ouvidas e Carta aprovada em 5 outubro de 1988 contemplou de modo textual significativas sugestões, inclusive a de inclusão do § 8º no artigo 226:
§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Este princípio corporifica e reconhece a violência no âmbito das relações de família – o que o feminismo anteriormente conceituou como “violência doméstica”. Este é o princípio constitucional em vigor que autorizou a aprovação da Lei Maria da Penha, criando esta mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
O movimento feminista jamais se iludiu quanto a considerar que a Lei Maria da Penha, por si só, viesse a eliminar a cultura de discriminação contra a mulher, da qual resulta a prática da violência doméstica. Também não se supôs que a Lei Maria da Penha viesse a ter curso pacífico em sua interpretação e aplicação nas instâncias da Justiça. Como não é fácil derrogá-la, pois tem sua constitucionalidade assentada no referido inciso 8º, do artigo 226, da CF/88, parte-se para a estratégia de comê-la pelas beiradas.
A lei 9.099/95 estabeleceu os juizados especiais criminais para processar e julgar as “infrações penais de menor potencial ofensivo”, assim consideradas pela mesma norma como “as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.”
Na peça inicial da referida ADI 4424, a Procuradoria Geral da República sustenta que, antes do advento da Lei Maria da Penha, nos juizados especiais  criminais, 70% dos casos envolviam situações de violência doméstica contra mulheres e o resultado, na grande maioria, era a “conciliação”. Logicamente, até 2006, nesta esfera, o procedimento a seguir só poderia ser aquele previsto na Lei 9.099/95. A Procuradoria considera que a sujeição ao procedimento dos juizados, “desestimulava a mulher a processar o marido ou companheiro agressor, e reforçava a impunidade presente na cultura e prática patriarcais. Tudo somado, afirmam, “ficou banal a prática de violência contra as mulheres.”    
A parir de 2006, a situação mudou e as ocorrências criminais tipificadas como violência doméstica passaram a ter regras procedimentais próprias, foros próprios. O artigo 41, da Lei Maria da Penha prevê expressamente que a tais casos não se aplicam as regras da lei dos juizados de pequenas causas. É, pois, de se considerar um retrocesso a aplicação da 9.099 os crimes da esfera da violência doméstica. Talvez porque seja mesmo difícil medir o grau de potencial lesivo das agressões nascidas na convivência familiar, nas relações conjugais e semelhantes. Devemos, assim, apoiar a iniciativa da Procuradoria Geral da República que assim bem sintetiza:
“A tese sustentada na presente ação é de que a única interpretação compatível com a Constituição é aquela que entende ser o crime de ação penal pública incondicionada” (referindo-se aos casos de violência doméstica). “A interpretação que faz a ação penal depender  de  representação da vítima,  por  outro  lado,   importa  em violação ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III),  aos direitos fundamentais de  igualdade (art.  5º,  I) e de que  a lei punirá   qualquer   discriminação   atentatória   dos   direitos   e   liberdades  fundamentais (art, 5º, XLI), à proibição de proteção deficiente dos direitos fundamentais,  e ao dever  do Estado de coibir  e prevenir  a violência no âmbito das relações familiares (art. 226, § 8º).
Excelentíssimas Senhoras, Excelentíssimos Senhores Ministros do Supremo Tribunal Federal, salvem a Lei Maria da Penha!

domingo, 22 de maio de 2011

UM DESTINO PARA VITÓRIA*




Um morador de rua revira uma caçamba de lixo. Encontra uma menina recém-nascida. Horas depois, a polícia chega à suposta autora do crime - a mãe. O que move uma mulher a abandonar sua décima primeira cria de modo tão cruel e radical? Pura insanidade ou um gesto consciente conquanto tresloucado? Manifestação de doença antiga ainda não exteriorizada ou uma resposta, por assim dizer, realista à impossibilidade de assumir a responsabilidade por um novo ser numa estrutura familiar sem futuro?

A primeira hipótese conduziria à dispensa da culpabilidade e da consequente punição da mulher feia e frágil exibida na TV. Portadores de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado são considerados inimputáveis. Mas, se não há loucura ou quadro que, segundo as perícias médicas, possa ser enquadrado na lei penal, a mulher há de ser submetida a julgamento, com perspectiva de condenação à dura pena.

Nesses tempos de baixo senso de humanidade, a mídia vai com tudo à ocorrência, mas dispensa reflexões sobre o drama inerente ao fato. A imagem entra em pauta por alguns dias e se repete à exaustão. O drama, não. E nesse esquema superficial de informação, as pessoas se acostumam a não refletir, não questionar e nem se chocar com as barbaridades cometidas por seus pares. A verdade é que a sociedade prefere fazer de conta que não é cruel. E neste pacto de se enganar, coisa feia é sempre obra do outro. A responsabilidade não é de ninguém. Para que saber da história subjacente a um crime tão doloroso como este de lançar um filho ao lixão da cidade? Quanto ao antes e ao depois, muitos silenciam, especialmente a imprensa, sempre tão operante na tarefa de armar espalhafatos sobre o fogo do caso enquanto ele ainda arde em cena.     

A menina foi retirada do lixo com vida e sobreviveu. Ganhou o nome de Vitória, como se costuma dar às meninas sobreviventes de desgraças análogas. Seu destino pode vir a ser vitorioso. Ela poderá ser notícia como autora de um grande feito, de um belo gesto de generosidade. Sabedora da história trágica de seu começo de vida, Vitória de tudo fará para reparar o gesto de sua mãe, a culpa de sua mãe. Jamais terá se convencido de que ela agira movida por maldade, racional intenção. Intimamente, estará convicta de que sua mãe agiu sob violenta emoção por guardar na alma dor imensa, irreparável. Quantas histórias terríveis lhe chegaram aos ouvidos no setor de assistência social das DPs por onde deu plantão? Teve aquela mãe que esqueceu o filho trancado no carro no estacionamento do shopping. Óbito, não deu outra. E tantas outras que deixaram seus bebês na porta de igrejas? Teve uma que pariu no banheiro do boteco, caso que nem é bom lembrar.

É verdade, doutor. Eu me interesso por assuntos de crime, castigo, juízo e loucura. E meu coração, mais que a razão, diz que o caso da minha mãe não foi de dolo. Eu acabara de entrar na faculdade quando fui procurada por minha irmã mais velha. Ela me contou sobre o que se passava com minha família de sangue no tempo do meu nascimento. Minha mãe já havia morrido no presídio e nada ficou concluído sobre a causa mortis. Soube-se que foi minguando aos poucos, já não falava com ninguém, não ia ao banho de sol, deixava a comida no prato, foi ficando cada vez mais ausente e sem cor. Minha irmã acha que ela morreu de culpa, de dor, de arrependimento pelo que fez comigo. Ela não era louca, Doutor. Foi um surto. Influência do estado puerperal. Coisa de mulher.  Como chorei nesse dia! Não convivi com ela, não sei do seu cheiro, do calor de suas mãos. Não conheci seu olhar, nem seu sorriso. Mas reconheço o seu desespero nas faces das tantas mães enlouquecidas que vi e das que não vi, mas sei das histórias delas.

Está certo, a imprensa tem que filmar tudo e passar na TV. E a coisa funciona um pouco como um espelho, um modo da gente se ver. Porém, mais que a notícia, eu me interesso mesmo é pelo que se passa na alma das pessoas que protagonizam as desgraças exibidas nos jornais. O problema é que no terreno da alma a imprensa não chega. E a Justiça, como se sabe, anda sempre aprisionada na letra da lei. Às vezes chega às sutilezas dos casos pela sensibilidade de uns poucos juízes de mentes mais abertas, algo relevante para os processos criminais. Só sei é que minha mãe merecia ter sido tratada, não confinada.

No exercício de minha profissão, faço de tudo para reparar o desvario de minha mãe. Esforço-me para atender às pessoas com humanidade, meu jeito de redimi-la da culpa que a comeu por dentro como um câncer. Um modo também de pedir desculpas à sociedade pelo gesto insano que ela cometeu. Não me sinto vítima, Doutor. Nem de minha mãe, nem do destino. Pode ser que eu tenha nascido de novo quando fui achada no lixo. Então, tive sorte. E faço de minha vida o que talvez tenha sido um breve sonho de minha mãe em seus tempos de sanidade: ver suas filhas crescidas, saudáveis e felizes.             

Pode ser viável o destino que para Vitória ora invento. Ou não.

A última notícia sobre o caso diz que há pessoas interessadas na adoção da menina. Aguarda-se o correr dos trâmites legais. Sim, ela merece uma família responsável, economicamente estruturada, uma família livre para amar. Enquanto o seu futuro permanece uma incógnita, me pego pensando nos enigmas da humanidade. Tento entender o fio da navalha onde nossas vidas mal se equilibram. Tento desvendar os tênues limites entre bondade e crueldade, entre loucura e razão, trágicos paradoxos da condição humana.    

* Crônica apresentada como tarefa à oficina de Crônicas e Cartas da Terapia da Palavra cordenação de Claudia Letti e Manria Rachel Lopes da Cunha.