quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Duas inglesas em todas nós


Neste ano de 2011, duas inglesas chamaram a atenção do mundo por imagens inteiramente contrapostas de suas respectivas trajetórias de vida. Uma vem da plebe e ascende à realeza em cerimônia de casamento realizada nos requintes e rigores da tradição. Enquanto esta seguia a passos firmes o caminho para o panteon, a outra inglesa descia do topo a passos trôpegos, anunciando o seu desfecho, mesmo que a vida ainda insistisse em brilhar em seus olhos acentuados por tintas fortes inscritas também na pele, irremovíveis camadas de maquiagem.  

Em desfile em carro aberto, era previsto que a noiva desse bye bye ao povo que contribui com seus recursos para o processo de acumulação de nobreza, quer dizer, de riqueza. Mas o braço da moça só poderia se elevar até a exígua e exata altura permitida pelo protocolo real.

O noivo apresenta-se impecavelmente fardado, porte elegante, certa beleza herdada da mãe. Boas chances de não virar sapo. Apesar de um tanto batida, a referência a tal transformação sempre vem a calhar diante das cenas de um casamento. Mesmo que venha de trem ou a pé, no imaginário da noiva, o noivo sempre chega montado em cavalo branco. O mais usual é que, passado um tempo, o cavalo saia da cena, a circunferência do príncipe aumente uns pontos. Grandes chances de que o sonho se desfaça em silêncios, quando não em conflitos.  

E lá veio a noiva com seu buquê. Bela, culta, pontual, segura de seu papel, sorrisos contidos. No tears, que emoção de gente nobre não se expõe em público. Esta inglesa exibe ao mundo a imagem perfeita do modelo ideal de mulher – criatura “divina e graciosa” que preenche todas as expectativas da cultura dominante ao se colocar de modo perfeito no lugar previamente talhado.  

A outra inglesa acessa em minha memória a imagem das meninas transgressoras que fumavam no banheiro da escola, ensaiando movimentos de rock and roll. Esta outra figura não menos esguia e tipicamente londrina projeta-se em 2003 quando ainda não se ouvia falar da prometida ao príncipe. Compositora. Cantora. Voz quente, rascante, desobediente. Alma, estilo e elegância em visceral desalinho. Precisão britânica na torrente de musicalidade, mesmo nos últimos tempos de emissão enrolada pela ação do álcool. Em 2006, chega ao auge da carreira com premiações importantes. Seus hábitos inteiramente contrários aos modos retratados no casamento real despertam incertezas quanto à sua longevidade. Porém, até o último dia, não abalam a qualidade de sua arte. A morte leva desta outra inglesa o que dela restava de materialidade corporal, enquanto sua obra permanece viva na história da música popular internacional.                

Vejo as cenas das duas inglesas como representações de símbolos extremos do papel que, em regra, confere-se à mulher na sociedade. Então, sonho com a possibilidade de construção de identidades femininas não aprisionáveis em modelos. Nem só santa, nem só demônio. É preciso descobrir os caminhos do meio. E tenho a visão de uma mescla de pinturas famosas - épocas, estéticas e conceitos distintos. E nos vejo a despertar a admiração do outro pelo retrato de nossa autêntica individualidade não contida em molduras. Equilíbrios renascentistas e assimetrias cubistas convivendo na mesma imagem de mulher, em sugestão de múltiplos e infinitos traçados.

Há algo em comum entre as duas inglesas? Sim. São mulheres, quer dizer, das quais sempre se espera comportamentos estratificados, o que dificulta a liberdade de existir em plenitude. E há também o gosto pelas alegorias elevadas sobre a cabeça, bem representadas pelos chapéus das convidadas no casamento real e pelo murundu de cabelo que compunha o look da cantora, aquele mesmo que armávamos com auxílio do Bombril para ir aos bailes nos anos 60. Uma espécie de síndrome da coroação ou do pedestal que transborda os arredores de Londres. Rainha do Rádio. Rainha da Bateria. Rainha do Lar. Assim nos querem. Lá no alto. No altar. Sublimes. Deusas. Não é para desconfiar?
                                                       Em 21/09/2011     

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