domingo, 22 de maio de 2011

UM DESTINO PARA VITÓRIA*




Um morador de rua revira uma caçamba de lixo. Encontra uma menina recém-nascida. Horas depois, a polícia chega à suposta autora do crime - a mãe. O que move uma mulher a abandonar sua décima primeira cria de modo tão cruel e radical? Pura insanidade ou um gesto consciente conquanto tresloucado? Manifestação de doença antiga ainda não exteriorizada ou uma resposta, por assim dizer, realista à impossibilidade de assumir a responsabilidade por um novo ser numa estrutura familiar sem futuro?

A primeira hipótese conduziria à dispensa da culpabilidade e da consequente punição da mulher feia e frágil exibida na TV. Portadores de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado são considerados inimputáveis. Mas, se não há loucura ou quadro que, segundo as perícias médicas, possa ser enquadrado na lei penal, a mulher há de ser submetida a julgamento, com perspectiva de condenação à dura pena.

Nesses tempos de baixo senso de humanidade, a mídia vai com tudo à ocorrência, mas dispensa reflexões sobre o drama inerente ao fato. A imagem entra em pauta por alguns dias e se repete à exaustão. O drama, não. E nesse esquema superficial de informação, as pessoas se acostumam a não refletir, não questionar e nem se chocar com as barbaridades cometidas por seus pares. A verdade é que a sociedade prefere fazer de conta que não é cruel. E neste pacto de se enganar, coisa feia é sempre obra do outro. A responsabilidade não é de ninguém. Para que saber da história subjacente a um crime tão doloroso como este de lançar um filho ao lixão da cidade? Quanto ao antes e ao depois, muitos silenciam, especialmente a imprensa, sempre tão operante na tarefa de armar espalhafatos sobre o fogo do caso enquanto ele ainda arde em cena.     

A menina foi retirada do lixo com vida e sobreviveu. Ganhou o nome de Vitória, como se costuma dar às meninas sobreviventes de desgraças análogas. Seu destino pode vir a ser vitorioso. Ela poderá ser notícia como autora de um grande feito, de um belo gesto de generosidade. Sabedora da história trágica de seu começo de vida, Vitória de tudo fará para reparar o gesto de sua mãe, a culpa de sua mãe. Jamais terá se convencido de que ela agira movida por maldade, racional intenção. Intimamente, estará convicta de que sua mãe agiu sob violenta emoção por guardar na alma dor imensa, irreparável. Quantas histórias terríveis lhe chegaram aos ouvidos no setor de assistência social das DPs por onde deu plantão? Teve aquela mãe que esqueceu o filho trancado no carro no estacionamento do shopping. Óbito, não deu outra. E tantas outras que deixaram seus bebês na porta de igrejas? Teve uma que pariu no banheiro do boteco, caso que nem é bom lembrar.

É verdade, doutor. Eu me interesso por assuntos de crime, castigo, juízo e loucura. E meu coração, mais que a razão, diz que o caso da minha mãe não foi de dolo. Eu acabara de entrar na faculdade quando fui procurada por minha irmã mais velha. Ela me contou sobre o que se passava com minha família de sangue no tempo do meu nascimento. Minha mãe já havia morrido no presídio e nada ficou concluído sobre a causa mortis. Soube-se que foi minguando aos poucos, já não falava com ninguém, não ia ao banho de sol, deixava a comida no prato, foi ficando cada vez mais ausente e sem cor. Minha irmã acha que ela morreu de culpa, de dor, de arrependimento pelo que fez comigo. Ela não era louca, Doutor. Foi um surto. Influência do estado puerperal. Coisa de mulher.  Como chorei nesse dia! Não convivi com ela, não sei do seu cheiro, do calor de suas mãos. Não conheci seu olhar, nem seu sorriso. Mas reconheço o seu desespero nas faces das tantas mães enlouquecidas que vi e das que não vi, mas sei das histórias delas.

Está certo, a imprensa tem que filmar tudo e passar na TV. E a coisa funciona um pouco como um espelho, um modo da gente se ver. Porém, mais que a notícia, eu me interesso mesmo é pelo que se passa na alma das pessoas que protagonizam as desgraças exibidas nos jornais. O problema é que no terreno da alma a imprensa não chega. E a Justiça, como se sabe, anda sempre aprisionada na letra da lei. Às vezes chega às sutilezas dos casos pela sensibilidade de uns poucos juízes de mentes mais abertas, algo relevante para os processos criminais. Só sei é que minha mãe merecia ter sido tratada, não confinada.

No exercício de minha profissão, faço de tudo para reparar o desvario de minha mãe. Esforço-me para atender às pessoas com humanidade, meu jeito de redimi-la da culpa que a comeu por dentro como um câncer. Um modo também de pedir desculpas à sociedade pelo gesto insano que ela cometeu. Não me sinto vítima, Doutor. Nem de minha mãe, nem do destino. Pode ser que eu tenha nascido de novo quando fui achada no lixo. Então, tive sorte. E faço de minha vida o que talvez tenha sido um breve sonho de minha mãe em seus tempos de sanidade: ver suas filhas crescidas, saudáveis e felizes.             

Pode ser viável o destino que para Vitória ora invento. Ou não.

A última notícia sobre o caso diz que há pessoas interessadas na adoção da menina. Aguarda-se o correr dos trâmites legais. Sim, ela merece uma família responsável, economicamente estruturada, uma família livre para amar. Enquanto o seu futuro permanece uma incógnita, me pego pensando nos enigmas da humanidade. Tento entender o fio da navalha onde nossas vidas mal se equilibram. Tento desvendar os tênues limites entre bondade e crueldade, entre loucura e razão, trágicos paradoxos da condição humana.    

* Crônica apresentada como tarefa à oficina de Crônicas e Cartas da Terapia da Palavra cordenação de Claudia Letti e Manria Rachel Lopes da Cunha.
            

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